Daniel Craig se despede de 007 em grande estilo
Quando Daniel Craig foi escolhido para ser James Bond em 2006, muita gente se espantou. Afinal de contas, o tipo físico dele era uma quebra definitiva em relação aos outros atores que haviam encarnado o agente secreto de Sua Majestade, com licença para matar. Só que ninguém imaginava que, além das feições duras, do cabelo louro e do currículo ainda incipiente como ator, Craig seria capaz de dar ao personagem de Ian Fleming uma dimensão humana que foi além dos roteiros e direções. Com ele, Bond conseguiu sofrer, se decepcionar, perder e destruir involuntariamente, ou seja, o personagem que era a encarnação de uma Inglaterra perfeita num mundo que há muito havia acabado, tornou-se uma pessoa amargurada, prisioneira numa lógica que se repete em looping, da qual ele deseja a todo custo se libertar. E, bem, “007 – Sem Tempo Para Morrer”, quinto filme que Craig estrela como Bond, é também a sua despedida do papel.
Interessante notar que a imagem do agente secreto inglês segue vinculada a atores como Roger Moore ou Sean Connery, que o encarnaram em outros tempos, décadas atrás. Mas nenhum deles, muito menos os outros Bonds – George Lazenby, Pierce Brosnan e Timothy Dalton – tiveram um filme de despedida. Craig tem aqui este canto de cisne de seu Bond, culminando um arco de histórias que começaram no primeiro longa do qual ele participou, “Cassino Royale”, de 2006, no qual viveu um romance faiscante com Eva Green, que encarnou a personagem Vesper Lynd com igual precisão. Este longa foi uma espécie de reboot da franquia, procurando adaptá-la para o nosso tempo, especialmente para um mundo em que as fronteiras geopolíticas ficaram difíceis de se perceber e que o dinheiro e o oportunismo se tornaram os grandes fatores de decisão acima de praticamente tudo. Para isso, uma série de eventos percorreram e interligaram os longas que vieram a seguir; do fraco “Quantum Of Solace” (2009) aos soberbos “Operação Skyfall” (2012) e “007 Contra Spectre” (2015), dando à franquia a tal profundidade dramática e dimensão criativa e artística inédita.
“Sem Tempo Para Morrer” é um filmaço, mas tem alguns poréns. O roteiro exige que o espectador tenha conhecimento e domínio plenos desse arco dramático que começou há quinze anos, com “Cassino Royale”, para compreender plenamente a sequência de eventos proposta aqui. Além disso, se Bond se fortificou com a presença de Craig no papel, as bond girls, personagens femininas que eram sempre alvo da conquista meramente sexual por parte do agente secreto, mereciam um pouco mais de força aqui. Lea Seydoux, que vive Madeleine Swann, não é uma atriz com carisma para sustentar um personagem que faça frente ao Bond de Craig. E isso fica notável neste filme, no qual ela tem uma atuação apenas correta. Já as outras personagens femininas presente, a agente cubana Paloma (vivida pela sensacional Ana de Armas) e a agente 00 (vivida pela boa Lashana Lynch) são muito mais vivas e interessantes, especialmente a participação de De Armas, que quase rouba o filme. Além delas, o “M”, vivido por Ralph Fiennes é bem interessante, justo pelo roteiro o colocar numa dimensão de alto funcionário do governo que é capaz de errar e, neste caso, errar muito. Não darei spoilers.
E a outra parte indissociável de um filme de 007, a do vilão, é relativamente bem atendida pela presença de Rami “Freddie Mercury” Malek, como o amargurado e letal Safin. Mas sua atuação é insuficiente para dar conta de um filme tão grande quanto este. Não por acaso, a produção recorre à presença do sensacional e irrepreensível Christopher Waltz, como o ainda mais sensacional Stavros Blofeld, que ofusca o vilão de Malek ao participar de apenas uma sequência. Na direção, o americano Cary Fukunaga, que substitui Danny Boyle no projeto, entrega uma atuação segura e muito bem feita, com belos planos feitos com soluções audaciosas para câmera, trazendo um filme que, além de bom, é bonito.
Ao fim de “Sem Tempo Para Morrer”, fica a pergunta: quem será o próximo James Bond? Craig já saiu da franquia e, apesar de apresentar uma solução para esta questão, o filme não a confirma como definitiva. Eu não consigo enxergar um ator que tenha tantas imperfeições humanas – que se transformaram em poderosos trunfos – como Craig. E, neste caso, escolher alguém perfeito e infalível será arremessar a franquia num patamar inferior. Filme de James Bond, desde 2006, passou a ser uma experiência que vai além dos tiroteios e artefatos mirabolantes. Uma belezura.
007 – No Time To Die (2021)
Direção: Carey Joji Fukunaga
Roteiro: Carey Joji Fukunaga, Neil Purvis, Robert Wade e Phoebe Waller-Bridge
Elenco: Daniel Craig, Rami Malek, Lea Seydoux, Lashana Lynch, Ralph Fiennes, Ana de Armas
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.