Coringa e o espírito do tempo

 

 

O Coringa de Joaquin Phoenix no longa capitaneado por Todd Phillips tem despertado preocupação em parte da crítica especializada e do público. O motivo seria um possível uso do personagem como símbolo de redenção para a chamada cultura incel. Os celibatários involuntários, misóginos e não raro racistas, que canalizam a frustração de uma idealização amorosa para atos violentos e ataques de ódio em ambientes virtuais. Segundo consta, ao menos quatro massacres realizados com armas de fogo nos EUA possuem ligação comprovada com membros da cultura incel.

 

A associação de parentes das vítimas de um atirador durante uma sessão de Batman – O Cavaleiro Das Trevas, em 2008, tornou pública a sua preocupação de que a exibição de Coringa possa estimular e inspirar novos atos homicidas. E no Recife, já na semana de estreia do filme, parte do público abandonou em pânico uma sessão onde um homem embriagado gritava e dizia coisas desconexas, por vezes repetindo diálogos da projeção.

 

Parece um derretimento assustador dos limites entre a ficção e a vida concreta. Ainda mais quando se leva em conta que o Coringa é um assassino sem limites. Uma mente impossível de ser controlada e entendida. Mas não é de hoje que o personagem exerce algum tipo de fascínio e estimula admiração nas pessoas.

 

Uma das imagens mais difundidas do Coringa, aquela onde ele aparece enlouquecido, com as mãos nos cabelos, a onomatopéia de sua gargalhada ao fundo, é retirada da graphic novel A Piada Mortal. Nela, o vilão aleija, tortura e viola outros personagens. É uma leitura dolorosa. É também nessa história onde é apresentada uma possível origem, em parte aproveitada no novo filme. Um aspirante a comediante, massacrado pela necessidade de sustentar sua família e o desejo de fazer sucesso com seu sonho artístico. Trágicos acontecimentos depois, ele se encontra quimicamente desfigurado – a pele pálida, os cabelos verdes, o sorriso esgarçado – e enlouquece de vez.

 

A Piada Mortal não é a única, mas talvez a mais célebre história a pincelar um suspiro de simpatia pela trajetória do personagem. É difícil não sentir pena do sujeito quando a miséria se completa. Já como criminoso consumado, sua tristeza pelo passado soa honesta. Mas é nesse ponto que a coisa fica desconfortável – estamos simpatizando com o Coringa, o homicida que cometeu nessa mesma história as atrocidades descritas no parágrafo acima.

 

Desde a publicação dessa clássica revista, na década de 1980, a popularização da imagem do Coringa só cresceu. São camisas, broches, canecas, uma infinidade de produtos. Os fãs o utilizam como tema de cosplay em convenções. Mesmo seu confuso relacionamento com a personagem Arlequina, baseado numa infinidade de situações abusivas, é utilizado como referência por casais menos ou mais apaixonados.

 

Alguma coisa na nossa relação coletiva com os personagens de ficção, e os de quadrinhos, que dominam a cultura pop nos últimos anos, parece ter derrapado em um trecho qualquer da estrada. Os lados, as facções de bem e mal dos gibis, têm se fundido e se contaminado nas histórias. Às vezes fica difícil o reconhecimento de um ou outro. Nenhum problema, a vida é mesmo complexa e saber sempre o certo a se fazer é uma tarefa, ora, heroica. Natural que nossas HQs, frutos de suas épocas, espelhem a confusão social que sentimos cada vez mais.

 

O que surpreende é como estamos carregando símbolos que representam atos de violência que nenhuma pessoa sã sequer cogitaria realizar. O Coringa cativa por uma certa irreverência e humor – é um palhaço, afinal – e por fazer troça da rígida ordem social representada pela sisudez de seu nêmesis, o Batman. Mas exatamente porque o homem-morcego é um herói no limite da perfeição humana, o Coringa é uma força caótica, imensurável, de terror e medo. A entidade fora do sistema que o corrói com raiva indignada.

 

Esse é o elo com os incels que tem assustado tanta gente. Nessa altura da ebulição contemporânea, o Coringa pode cair como uma luva no papel de muso inspirador de gente profundamente perturbada. Porque ele já é aceito, como um elemento selvagem, por todos nós. Já abraçamos parte da loucura do personagem como algo plenamente razoável diante de muito do que está por aí.

 

O novo filme vai justificar essa e outras leituras do personagem, ou não, a depender do que cada um pode encontrar durante a projeção. O que fica é a certeza de que estamos chegando, nós que damos um valor alto para a criação e as narrativas do entretenimento, a um ponto onde as produções que pretendam fazer evoluir o gênero, no caso a festa dos super-heróis, precisarão lidar com as questões que nosso tempo apresenta. Batman Vs. Superman (2016) tentou e falhou. O Coringa de Todd Phillips e Phoenix, pelo burburinho em resenhas e festivas afora, parece estar desbravando um caminho.

Fabio Luiz Oliveira

Fabio Luiz Oliveira é historiador e crítico da Arte não praticante. Professor da rede pública do Rio de Janeiro. Escritor sem sucesso, espanta o mofo de seus textos em secandoafonte.wordpress.com

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