Experimentalismo brasileiro sensacional mas quase desconhecido aqui

 

 

 

 

Ricardo Dias Gomes – Muito Sol
37′, 10 faixas
(Hive Mind)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

Até o fim deste ano, a gente vai publicar aqui no site um texto sobre os artistas brasileiros que lançam bem sucedidos discos no exterior e conseguem ter uma carreira criativa e relevante. Este número vem aumentando consideravelmente, impulsionado tanto pelas perspectivas maiores, encontradas lá fora, quanto pelo desencanto com o governo anterior, que contribuiu enormemente para intensificar o ambiente inóspito para quem deseja produzir arte fora dos parâmetros usuais. Ricardo Dias Gomes é um desses músicos brasileiros com relevância no exterior. Seu trabalho autoral é instigante, arrojado e, ao mesmo tempo, tributário de uma música brasileira de natureza popular, mas balizado por um desejo de alargar fronteiras e perspectivas, inserindo elementos experimentais, que podem vir tanto do rock alternativo anglo-americano dos anos 1990/2000, quanto do jazz de músicos contemporâneos como Bill Frisell. Mesmo com esta parcela gringa, o DNA da música de Ricardo é inegavelmente brasileiro e isso dá a pitada de exotismo e diferença que o público estrangeiro deseja ouvir. “Muito Sol”, seu terceiro e mais recente trabalho, é a melhor maneira de explicar tudo isso.

 

A carreira solo de Ricardo se iniciou quando terminou a última turnê que fez com a Banda Cê, um grupo que acompanhou Caetano Veloso entre 2006 e 2015. Com o velho compositor baiano foram dez anos, três discos de estúdio (Cê, de 2006, Zii e Zie, de 2009 e Abraçaço, gravado em 2012), três álbuns ao vivo e uma série de apresentações por todos os cantos possíveis. “Estar perto do Caetano por uma década foi das mais inspiradoras experiências artísticas. A coragem e a honestidade tão presentes nas suas canções e na sua performance tiveram impacto imenso na minha carreira solo” – disse ele ao site português E-Cultura. “Muito Sol” foi gravado entre Nova York, Lisboa e Rio de Janeiro e apresenta um elenco estelar e multinacional, com Jeremy Gustin (bateria), Will Graefe (guitarras), Ryan Dugre (guitarras), Gil Oliveira (percussão), Alex Toth ( trompete), Tiago Queiroz (sax, flauta), Jonas Sá (sintetizadores), Julian Desprez (guitarras), Pedro Sá (guitarras) & Shahzad Ismaily (sintetizadores). A economia de sons e os arranjos que abrem espaço para o silêncio são marcas da música de Ricardo, e isso se mantém como uma espécie de fio condutor ao longo das dez faixas do álbum. É uma simplicidade enganosa, que empurra o ouvinte para uma postura exploratória, em busca de algo que está ali, mas é quase imperceptível.

 

Dentre as dez canções que compõem o painel que é “Muito Sol”, logo salta aos ouvidos a beleza desconcertante de “Morrerei Por Isso”, que tem andamento de samba mas que recebe arranjo que adorna a melodia com teclados, guitarras contidas que parecem a ponto de explodir e um belíssimo solo de saxofone, deixando o ouvinte a meio caminho entre um Rio de Janeiro que nunca existiu, de onde sai uma ponte aérea para algum lugar que não sabemos onde fica. O ambiente é de sonho em preto e branco, um efeito belíssimo e conseguido de forma muito inteligente. “Um Dia”, por sua vez, é um instrumental sonhador, cheio de violões, percussões e timbres distintos de guitarras, que vão formando um clima de paz. Há uma aura de rock experimental em “Com Seis Anos”, talvez a mais sensacional canção presente em “Muito Sol”. É uma meditação sobre o passado tendo o presente como comparativo de ações, emoções e posturas, com a constatação inevitável da passagem do tempo que nos atravessa a todos, modificando, amadurecendo, preparando para um destino inevitável.

 

 

Este mesmo clima que tem a ver com guitarras, ainda que tocadas de forma totalmente diferente do usual, permeia também “Não Ver Onde Se Vê”, cujo arranjo surpreende pelas mudanças que vai insinuando ao longo da melodia. E em “Coração Sulamericano”, Ricardo se permite um abraço apertado no rock mais rasgado e cru, numa espécie de hardcore obscuro, cinzento e desajeitado, no melhor dos sentidos que estes termos podem comportar. A imprensa estrangeira achou ecos de Caetano Veloso, João Bosco e Edu Lobo nos climas e estruturas oferecidas em “Muito Sol”. Faz sentido. É mais um álbum que traduz uma das muitas imagens possíveis do Brasil – livre dos signos e elementos visuais aos quais estamos acostumados – que ajudam a construir uma visão mais precisa e menos estereotipada do que somos e do que fazemos/sentimos por aqui. Maravilhoso.

 

Ouça primeiro: “Morrerei Por Isso”, “Um Dia”, “Com 6 Anos”, “Não Ver Onde Se Vê”, “Coração Sulamericano”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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