Caetano Cantando Transa: Histórico e truncado

 

 

Em agosto de 2023, Caetano Veloso participou do Festival Doce Maravilha, fazendo uma homenagem aos cinquenta anos de seu álbum “Transa”, lançado em 1972. Gravado em Londres, sob o impacto da vida no exílio e em clima de comunhão com vários outros músicos, igualmente refugiados, o disco se transformou num objeto de culto e hype com o passar do tempo. Como vivemos uma época em que o olhar sobre o que passou é descontextualizado completa e constantemente, muita gente ignora que “Transa” nasceu para ser uma obra introspectiva e meditativa, cheia de saudade, tristeza e tentativa de sobrevivência/assimilação de estar inserido numa sociedade estrangeira. Para uma parcela crescente do público mais novo de Caê, o disco é uma espécie de celebração de algo que não se compreende bem. Claro, Caetano não tem culpa disso, pelo contrário. Sua concepção de show comemorativo do disco passa pela preocupação constante de explicar ao público o que passava por sua mente na época, contextualizando o público sobre o que fez imediatamente antes e depois de “Transa” ser lançado. É assim, com este clima e intenção, que o show comemorativo do cinquentenário do disco, que nasceu para existir apenas numa noite, ganhou mais quatro apresentações: duas no Rio (Arena Jockey Clube) e São Paulo (Espaço Unimed).

 

Sem dúvida, o grande barato da apresentação é que Caetano procura recriar o clima musical do álbum, evocando os arranjos originais e, a partir de um certo momento da apresentação, trazendo os músicos que tocaram com ele nas gravações. É aí que sobrem ao palco Tutty Moreno, Áureo de Souza e Jards Macalé, este último, responsável pela direção musical do disco. É feita uma menção ao baixista Moacyr Albuquerque, falecido em 2000, e os sujeitos atacam as faixas de “Transa” com vigor e boa vontade. Nesta altura, Caetano já havia cantado algumas canções introdutórias, na intenção de contextualizar o público. Depois de “You Don’t Know Me”, faixa que inicia “Transa”, vieram “Irene”, “Maria Bethânia”, “London London”, “The Empty Boat” e “Araçá Azul”, esta última, título do álbum lançado após “Transa”, em 1973. Mas, antes mesmo de Macalé e os outros músicos entrarem em cena, Caetano já tocara ótimas versões de “Triste Bahia”, “Neolithic Man” e “It’s A Long Way”, todas canções do disco original.

 

A partir daí, acontece, a meu ver, um grave erro de roteiro. Com Macalé em cena, Caetano reprisa “You Don’t Know Me” e abre espaço para ele, que manda leituras inspiradíssimas de “Mal Secreto” (de Waly Salomão, lançada por ele em 1972), com direito a citação de “Corcovado” (Tom Jobim e Vinícius de Moraes) e “Sem Samba Não Dá”, originalmente composta pelo próprio Caetano para seu último álbum, “Meu Coco” (2021), mas que ganhou releitura de Macalé e Criolo há alguns meses. Quando você pensa que o show veio para o presente, os músicos voltam para “Transa” e mandam “Mora Na Filosofia” e “Nine Out Of Ten”. E então temos outro erro de roteiro. A título de chamar ao palco Angela Ro Ro, que participou das gravações de uma faixa do álbum, “Nostalgia”, o show abre espaço para que ela execute duas canções gravadas na virada dos anos 1970/80, “Escândalo” e “Amor, Meu Grande Amor”, totalmente distintas do clima proposto pelo show, causando um desvio de 180 graus na programação. Claro, Ro Ro é figuraça e sempre tem recurso para cativar a atenção do público, mas o infeliz que desejasse se ater à carreira de Caetano naquele período, contando com esclarecimentos do próprio, precisou respirar fundo. Fechando o trabalho, a tal canção – “Nostalgia” – com menos de dois minutos, ressurge e só. Fechando o percurso musical, um bis de “Nine Out Of Ten”.

 

É preciso dizer que o show de “Transa – Cinquenta Anos” é um evento histórico e raro em termos de Brasil, um país tão desmemoriado e sem noção. É emocionante ver Caetano e Macalé no mesmo palco, eles mesmos, dois highlanders da canção brasileira que importa, cheios de relevância e contexto histórico. É bom que se lembre que, apenas pelas versões impactantes de “Triste Bahia” e “It’s A Long Way”, o show já se justifica e, no fim das contas, diante desses argumentos, qualquer exigência de detalhes fica no terreno da chatice absoluta. No fim das contas, Caetano consegue com essas poucas apresentações, dar a seu álbum o lugar de destaque em sua discografia, mas, cá entre nós, eu me emocionaria muito mais se ele se dispusesse a comemorar qualquer aniversário de “Cinema Transcendental”, seu brilhante – e nosso preferido – disco de 1979.

 

Setlist:

You Don’t Know Me
Irene
Maria Bethânia
London, London
The Empty Boat
Araçá Azul
Triste Bahia
Neolithic Man
It’s a Long Way
You Don’t Know Me
Mal Secreto
Corcovado
Sem Samba Não Dá
Mora na filosofia
Nine Out of Ten
Escândalo
Amor Meu Grande Amor
Nostalgia

Bis:

Nine Out of Ten

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *