Sem concorrência para Kendrick Lamar

 

 

 

 

Kendrick Lamar – Mr. Morale & The Big Steppers
(Universal)
73′, 18 faixas

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

Não há páreo para Kendrick Lamar no rap mundial. O cara é absolutamente dominante e exuberante, seja na construção das letras, na estrutura das canções, nos arranjos, nas escolhas de timbres, de tudo. Ele é um pequeno gênio em ação, diante dos nossos olhos. E isso não é exagero, especialmente para uma pessoa – eu, no caso – que tem dificuldade em gostar do hip hop contemporâneo tanto quanto gosta do estilo nos anos 1990. Lá, naquele tempo, gente como Arrested Development, De La Soul, A Tribe Called Quest, Digable Planets e até gente mais pop como Naughty By Nature, junto com o Public Enemy, conseguiram levar a falação urbana com batidas e samples para passear por caminhos nunca antes imaginados. Essa geração transformou o estilo em arte, em algo muito além do pensado. Mas, veja, já são 30 anos. Quando eu ouço algum álbum de hip hop, instintivamente busco as grandes sacadas sonoras, o uso dos samplers, a atuação musical que complementa o canto. E considero que essa é uma lacuna que existe no estilo hoje. Só dois caras conseguem obter resultados excelentes nesse quesito: Kendrick Lamar e Childish Gambino. Temos então este complexo “Mr. Morale & The Big Steppers”.

 

A gente já viu isso antes. Kendrick lançou o último trabalho – “DAMN” – em 2017. O mundo muda tão rápido que, sim, já dá pra sentir diferenças fundamentais num espaço de tempo dessa extensão. No caso de Kendrick, a impressão deve ser muito grande pois, de lá pra cá, ele tornou-se um artista de nível mundial, apareceu no Superbowl, fez turnê mundial, participou da trilha sonora de “Pantera Negra”, ou seja, tornou-se referência absoluta em seu setor. Mais que isso: casou, teve um filho e enfrentou todas as barras pesadas que vêm como consequência dessa mudança de status. Além disso, teve um bloqueio criativo, teve que lidar com Donald Trump na presidência do país e, como se não bastasse, sentiu os efeitos da pandemia de covid-19. Não é fácil, mesmo sendo uma superestrela mundial, imagino eu. Sendo assim, o álbum é uma crônica pessoal desses últimos tempos, beneficiada pela fluência dos eventos e acentuada pela capacidade de Kendrick de narrar e musicar essas situações. Isso deu a Mr. Morale & The Big Steppers um ar histórico, um álbum que carrega a responsabilidade de confirmar tudo o que “DAMN” proporcionou.

 

 

Kendrick Lamar parece ser um cara destemido, sendo assim, tacou 18 faixas no álbum, tornando-o duplo e com uma duração de 73 minutos. É muita coisa para um estilo tão literal quanto o rap, mas, asseguro, eles passam voando diante da musicalidade que a produção contém. No comando estão Sounwave (que produz KL desde o início de sua carreira), JLBS, DJ Dahi Pharrell e o álbum conta com participação de gente boa como Sampha, Thundercat e algumas revelações como a cantora Amanda Riefer e os rappers Ghostface Killa e Summer Walker. E, fechando a lista de colaboradores, ninguém menos que Beth Gibbons a voz do Portishead em pessoa. Ou seja, não estamos falando de um evento banal. Dá pra dizer que não há uma única faixa por aqui que não contenha uma boa sacada de produção. Até o “Rich Interlude”, com menos de dois minutos, tem um uso de piano e teclado que dá um colorido especial para o clima.

 

 

São tantos momentos bons por aqui que é complicado destacar um ou outro, mas dá pra amar a mudança de clima e as nuances da faixa de abertura, “United In Grief”, que passeia por percussões e mudanças de andamento que a transformam do meio pro fim. Tanbém tem a gloriosa “Die Hard”, que tem baixo tocado por Thundercat e um jeitão de faixa funk de alguns anos atrás, com ótima participação da cantora Amana Riefer e bons samples. Sampha, que é um cara bem talentoso e ainda meio ignorado por aqui, dá contraponto suavizante na ótima “Father Time”, outra faixa que tem belo uso de teclados e pianos. Tem a surpreendente “We Cry Together”, com uma porradaria verbal que vai oscilando entre discussão terrível, agressão, desentendimento e tudo mais que uma briga de casal pode ter e como isso vai mudando e evoluindo. O resultado é admirável e impressionante. E ainda estão presentes “Savior”, na qual Kendrick vai contra os antivax e “Auntie Diaries”, em que ele se arrepende do passado homofóbico.  Fechando esse pequeno hall de indicações, “Mother I Sober”, que tem a voz fantasmagórica de Beth Gibbons nos vocais de apoio. É tudo de verdade e muito, muito confessional.

 

 

“Mr. Morale & The Big Steppers” é aquele tipo de disco que é bem raro hoje: ele é verdadeiro, confessional, muito bem pensado musicalmente e, ainda por cima, tem a capacidade de trazer aquela dimensão além da música que as obras de artes demandam hoje em dia, nos tempos digitais-líquidos que vivemos. KL tem a manha e tem a fluência pra lidar com tudo isso e ainda fazer belezuras como este álbum.

 

 

Ouça primeiro: “Die Hard”, “We Cry Together”, “United In Grief”

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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