Cat Power recria o primeiro concerto elétrico de Bob Dylan

 

 

 

 

 

Cat Power – Sings Dylan: The 1966 Royal Albert Hall Concert
88′, 15 faixas
(Domino)

3.5 out of 5 stars (3,5 / 5)

 

 

 

 

A carreira de Chan Marshall, a cantora e compositora por trás do nome Cat Power, tem, com este novo álbum, doze discos. Destes, quatro trazem apenas covers. Podemos dizer que Cat tem um apreço por este ofício interessante de reler, se apropriar e recriar canções já gravadas por outros artistas. Nada errado nisso, sobretudo porque ela segue a regra dourada do Manual Não Escrito de covers, que diz: não faça uma versão que seja igual ao original. Porque é isso, gente: para que alguém se dá ao trabalho de recriar minuciosamente os detalhes de uma determinada gravação? O bacana do mundo encantado das covers é tentar soar como si mesmo, cantando aquela canção de uma lavra alheia. Com isso, além de respeitar seus fãs, o artista exercita suas capacidades e limites criativos, adquirindo rodagem e experiência. Daí vem Chan Marshall com seu novo lançamento, uma recriação de todo um concerto, e que concerto. A primeira – na verdade, uma das primeiras – apresentação em que Bob Dylan, secundado por sua banda de apoio na época, a The Band, incorporou guitarras elétricas em seu folk acústico tradicional, remontando ao ano de 1966. Este é o mote de “Cat Power Sings Dylan: The 1966 Royal Albert Hall Concert”, que saiu agora pela Domino Records.

 

Quando soube do projeto, pensei que era muita areia para o caminhão de Cat Power, que, apesar de ter voz e perfil interessantes, não me parecia muito capaz de dar conta de tamanha responsabilidade. A verdade é que este concerto de Bob Dylan em 1966 refletia a mutação mais recente do homem, esta tal incorporação de guitarras elétricas em sua rotina folk. Dito hoje, quase sessenta anos depois, parece algo banal e sem nenhuma importância mas, na época, tal movimento de Dylan – refletido nos álbuns “Bring It All Back Home” (1965) e “Blonde On Blonde” (1966), marcou uma mudança histórica no sentido que o rock’n’roll adquiriria dali em diante. Em grosso modo, procurando ser sintético, esta guinada estética de Dylan norteou quase toda a produção rock dos anos seguintes, impactando nos Beatles, nos Rolling Stones, nos Beach Boys…Era o estilo voltado para os jovens, incorporando letras e significados muito mais profundos. Lembrem-se, é uma explicação bem simples para algo tão complexo.

 

Sendo assim, Dylan estava a plenos pulmões num palco inglês – nem era o londrino Royal Albert Hall, mas um lugar em Manchester – quando foi chamado de “judas” pela plateia antes de tocar uma versão bombástica de “Ballad Of A Thin Man”. Das quinze faixas deste concerto, sete foram registradas de forma acústica e oito com instrumental elétrico, repetindo a dinâmica de “Bring In All Back Home”, que tinha um lado para cada tipo de arranjo. As performances de Dylan são definidoras, energéticas e cheias de risco, como se ele estivesse a caminho de um precipício. A força sonora da The Band é outro destaque dos registros de 1966, criando pequenos tsunamis instrumentais para dar conta de tamanha entrega por parte de Bob Dylan. Ou seja, como dissemos algumas vezes aí em cima, trata-se de um momento histórico.

 

A única maneira de enxergar mérito nesta empreitada, uma vez que Cat Power optou pela recriação, é observar o quão meticulosa ela poderia ser. A ordem das canções foi mantida, a banda que acompanha Chan é competente e respeitou a dinâmica original, partindo do acústico para o elétrico, virando a chave exatamente na passagem de “Mr.Tambourine Man” para “Tell Me, Momma”. Não dá pra esquecer que Chan Marshall tem seus dotes de intérprete, mesmo que ela esteja num modo repetidor, sendo assim, é possível apreciar seu registro vocal em colossos como “Desolation Row” e “Just Like A Woman”, dois destaques da parte acústica da apresentação. Depois da eletrificação, a banda contribui bastante para que Chan entregue boas versões de “Just Like Tom Thumb’s Blues”, “Ballad Of A Thin Man” (na qual alguém na plateia repete o grito de “judas”, ao qual Chan responde com um “Jesus” exclamativo) e, sobretudo, a colossal “Like A Rolling Stone”, que encerra o show com uma interpretação dedicada e forte.

 

Se esta apresentação de Chan Marshall/Cat Power vai servir para que novas gerações conheçam e se apaixonem pela obra vastíssima e definitiva de Bob Dylan, só o tempo dirá. Este álbum é uma curiosidade técnica, provavelmente um triunfo pessoal de uma intérprete que procura ser criativa sempre que possível. Aqui, ela fez diferente e, dentro dos limites de sua empreitada, fez o certo.

 

 

Ouça primeiro: “Like A Rolling Stone”, “Just Like A Woman”, “Desolation Row”, “Ballad Of A Thin Man”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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