Defendendo Nikita

 

 

Ontem revi “Rocketman” em família. É um belo filme. Comentei aqui que ele é um “musical sem ser musical”. Talvez porque as canções e a vida de Elton John – para espectadores e fãs em geral – sejam tão intrínsecas, que é muito natural pensar em situações da vida do cantor e compositor inglês passíveis de relação direta com suas gravações mais famosas. Mesmo que as letras da maioria esmagadora tenham sido escritas por Bernie Taupin, o nível de amizade e parceria de ambos é capaz de garantir a fidedignidade necessária.

 

Se você viu o longa, sabe que ele mostra a vida de Elton até o momento em que consegue se livrar dos vários vícios em várias drogas, contraídos ao longo de sua carreira. Se pensarmos em termos cronológicos, “I’m Still Standing”, canção que fala disso, entrou no álbum “Too Low For Zero”, de 1983. De fato, este disco significou uma melhora considerável na produção do cantor. Os dois trabalhos seguintes, “Breaking Hearts” e “Ice On Fire”, de 1984 e 1985, respectivamente, mostram que Elton vivia boa fase, cravando sucessos como “Sad Songs” e “Passenger” nas paradas. O mais importante deles, no entanto, é, sem dúvidas, “Nikita”. E muita gente ama falar mal da canção e desabonar o clipe. Vamos tentar defender os dois.

 

“Defender ‘Nikita'”, o clipe, só é possível se lançarmos o manto complacente dos anos 2010/20 sobre os dourados anos 1980. Aquele tempo de explosão da cultura pop, de massificação de músicas e clipes pelas nascentes TVs por assinatura – lá fora – e pelo incremento das emissoras de rádio. Elton era um cara forjado na década anterior. Não só ele, mas todos os medalhões deste tempo precisaram de uma severa repaginada para atender à demanda clíptica que a MTV exigia. Não tinha como comparar a habilidade de gente surgida nos 1980, como um Duran Duran, por exemplo, com gente como Elton. Havia exceções, claro. O Queen e sua linguagem visual adotada a partir de 1984, é uma delas. O mesmo grupo, no entanto, penou para desfazer a péssima impressão causada pelos clipes de discos como “Hot Space” e a trilha sonora de “Flash Gordon”. Elton abriu mão de suas roupas espalhafatosas como um sinal de mudança. E ele aparece no clipe de “Nikita” como um pretendente da personagem da canção.

 

A estratégia era mostrar um clipe em que o amor entre cantor e personagem da canção fosse impossível. Para isso, o diretor e roteirista Ken Russell – que havia dirigido vários longas nos anos 1970, entre eles, “Tommy” – fez um roteiro em que Elton seria o pretendente romântico de uma … guarda da fronteira da Alemanha Oriental. A partir das questões políticas e da própria “cortina de ferro”, o amor dos dois era totalmente impossível e o clipe mostra isso o tempo todo. Elton imagina o que poderia fazer com Nikita – viajar, ir ao futebol, namorar, andar de barco – e vê suas intenções frustradas ao perceber a moça vestida com a farda do exército democrático alemão. Ele contempla Nikita de longe, com uma câmera fotográfica,  de dentro de um … Bentley conversível vermelho, último tipo, de sua proriedade na vida real. Quem viu na época, jamais esquece, pro bem ou pro mal.

 

Se falar do clipe sem atenuantes culturais é difícil, a canção é uma das mais bonitas que Elton gravou depois de seu auge, até 1976. Com participação de George Michael nos backing vocals, “Nikita” é uma balada com vários detalhes na gravação. Tem bateria bem tocada e salpicada por efeitos eletrônicos. Tem uma linha de baixo muito legal, curvilínea e com ótimas sacadas. E tem um baita solo de sintetizador, executado pelo próprio Elton, que tornou-se um clássico da década. A voz dele está ótima e os vocais de apoio no refrão cumprem sua missão. A produção do chapa Gus Dudgeon é na medida para seu tempo, equipando de detalhes a estrutura de balada clássica, idioma no qual Elton e Bernie sempre foram mestres.

 

Sem muita gente gosta de atacar “Nikita”, talvez seja porque ela se tornou um dos maiores sucessos da carreira de Elton, figurando com destaque nas paradas de vários países, de Bélgica à África do Sul; de Suíça à Austrália; da Inglaterra aos Estados Unidos, passando pelo … Zimbábue.  “Nikita” foi single do álbum “Ice On Fire”, talvez a canção que mais fez sucesso das lançadas no disco. Foi para as prateleiras em 29 de outubro de 1985 e ainda reverberou ao longo de 1986. Fico imaginando uma cena de “Rocketman” na qual Elton ouviu a proposta de encenar um romance hétero, falar sobre a Guerra Fria – ainda que indiretamente – e atuar como um galã, tudo ao mesmo tempo, no clipe de “Nikita”. Certamente seria um destaque num eventual “Rocketman II”, que, no entanto, esperamos que jamais exista. “Nikita”, a canção, existe e é sensacional.

 

 

Já o clipe …

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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