Eu Queria Ser Rita Lee

 

 

 

Em 1981, quando Geraldo Mayrink perguntou para Rita Lee o que os fãs esperavam dela, Rita, de um jeito irreverente e franco, respondeu:

 

“Faço música, converso com as pessoas, procuro ajudar os bichos – ninguém fala por eles. Estão acabando com o planeta e isso sinceramente me incomoda mais que a crise do feijão. Não vou fazer nenhum show para Angola quando os índios daqui estão sendo exterminados. Talvez eu possa fazer alguma coisa. Talvez a gringa possa falar com os índios. Estou pensando num fã-clube diferente, para as pessoas transarem entre si. Teríamos que ter um símbolo – com uma simples olhada as pessoas saberiam quem era do fã-clube. Seria uma espécie de maçonaria do rock. O rock é a música do planeta. Eu gosto dessa palavra rock, pedra… É uma língua. Na minha humilde e modesta missão, quero trabalhar para o que seria uma música interplanetária. Eu tenho a impressão de que este planeta foi invadido por raças de outros planetas, que se encontraram aqui. Um planetão, sabe? Um planetão gostoso que a gente não conhece”.

 

A primeira mulher brasileira que entrou de cabeça no que alguém poderia chamar de rock’n’roll foi ela: Rita Lee Jones. Acontece que Rita foi tão imensa, tão brilhante, tão múltipla, tão “tantas em uma apenas”, que os limites eram cerquinhas mesquinhas e criadoras de barreiras muito grandes. Eram esses limites que, para ela, nos impediam de ver as estrelas.

 

 

Quando, sugestivamente, previram Rita como uma possível queridinha da MPB, ela logo se despiu dessas vestes. Depois de conquistar o título no imaginário popular de “Rainha do Rock”, Rita, mais uma vez, tirou sarro dizendo achar essa alcunha um tanto quanto cafona.

 

 

Mas Rita, sábia como era, tinha ciência que o título de “Rainha do Rock” trazia implícito o título de quem adotou o comportamento de uma mulher singular nesse mundo: aquele de ser livre. Por isso, Rita, preferia, em última instância, ser reconhecida como “Padroeira da Liberdade”. Não por acaso, assim fazem os seres espirituosos que pisam nesse planeta: eles transitam entre ideias, sambam na teoria dos contrários, se libertam de obviedades e radicalismos ao mesmo tempo que abraçam os contrastes do mundo e absorvem o que Bertrand Russel chamava de “espírito subjacente das coisas” e o que Platão ou Heráclito batizavam de “perpétuo devir” – há uma constante mudança, imprevisível, que caracteriza a natureza.

 

 

Foi impossível limitar o caráter singular de Rita Lee. O rótulo, para ela, sempre foi um traje desconfortável. No final de seu casamento com os Mutantes, houve um esforço de seus companheiros de banda para que Rita incorporasse um arquétipo de engraçadinha – o que ela, apesar de ter o bom humor como uma de suas características mais perceptíveis, não aceitou. No começo da sua carreira solo, não foi diferente: diversos críticos se empenhavam em implicar com Rita: “Rita Lee, aquela parenta da calça Lee”. “Rita Lee, uma roqueira senil”. O Henfil escreveu que o Brasil padecia de dois males: inflação e Rita Lee. Reclamavam de Rita ser mulher, por ser descendente de americanos, por ter olhos azuis, por ter sobrenome estrangeiro, por ser roqueira. “Achavam que o que eu fazia não era brasileiro”, respondia Rita quando perguntavam sobre a hostilidade que ela enfrentava no setor mais intelectualizado da música brasileira. Era um tempo que Rita, ao empunhar uma guitarra elétrica (esse abominável instrumento inglês/gringo/não-brasileiro), ao se jogar na sonoridade pop e falar de temas românticos de maneira leve e brincalhona, que não tinham o peso do divã e do analista no meio (o que Rita, em entrevista, chamou de sexo sem Freud), se deparava com uma crítica implicante que achava a sua música banal, pueril e ordinária.

 

 

Teenage Singers, Six Sided Rockers, Os Bruxos, Os Mutantes, Cilibrinas do Éden, Tutti Frutti e a consagração nacional. Foi ela que fez tudo que queríamos ter feito e foi tudo o que a gente queria ser. De norte a sul, todo o mundo soube que a importância de Rita foi muito além do que simplesmente a popularidade de suas canções. Com uma carreira que se estendeu por seis décadas, Rita Lee foi figura influente na música brasileira e se destacou por sua versatilidade musical e sua postura desafiadora diante dos padrões sociais e do senso comum. Ao longo dos anos, ela se aventurou, como apenas “exímia roqueira” poderia fazer, por uma variedade de estilos musicais.

 

 

Além de sua versatilidade, Rita Lee não procurava agradar alguma turma e adotou postura contestadora diante dos temas polêmicos. Bem longe do anacronismo e de maneira bastante genuína e pessoal, Rita se manifestou abertamente sobre questões urgentes, abordando assuntos relacionados ao mundo feminino, à liberdade da sexualidade e o meio ambiente – sempre de forma fluida, perspicaz e sábia, maneiras que dispensavam o tom professoral e rasteiro com que algumas pessoas abordam esses tópicos.

 

 

Eu sempre pensava que seria demais, que seria realmente um barato vir a esse mundo sendo Rita Lee. Felizmente, ela me auxiliou me aconselhando que existia prazer em ser quem eu sou.

 

 

Por ser tão versátil, Rita não conseguia, ao menos, se dizer “cantora”. Apenas declarava: eu sou uma pessoa. Em 1978, em entrevista à Folha de S. Paulo, foi desafiada a responder qual é o motivo de ter um país inteiro apaixonado por ela. A resposta veio simples e como uma revelação:

 

 

“Acho que as pessoas que gostam de mim entendem esse lado: subo no palco não como líder, como modelo, como artista. Sou representante de uma porção de perguntas, respostas, dúvidas. Eles não estão lá para escutar nenhuma verdade que eu tenho para dizer, não há mensagem, apenas procuro ficar junto com eles”.

 

 

Foi simplesmente assim que Rita conquistou o nosso mundo: sendo a Rita Lee artista, cantora, multi-instrumentista, compositora, escritora, atriz, ativista, apresentadora, amante das artes e da cultura; sendo esposa, mãe, avó, tutora de seus bichinhos tão amados – quantas vidas couberam numa só, Rita! Uma mulher extremamente brilhante que, às vezes, tímida, projetava uma energia de diversão genuína, poesia simples e liberdade como uma forma de dignidade pessoal e artística. Tudo isso com as suas madeixas intensamente vermelhas, a guitarra nos braços, a linguagem sincera, o espírito virtuoso, a mente livre e a voz invariavelmente doce. Rita foi uma estrela em forma de gente, dentro e fora dos palcos. Eu queria ser Rita Lee. Quem não queria?

Maisa Carvalho

Maísa Mendes de Carvalho é piauiense com toques paulistas, advogada, criadora e apresentadora do Distorção Podcast, amante das artes humanas e apaixonada por música.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *