Bettye Lavette – Blackbirds

 

 

Gênero: Soul

Duração: 40 min.
Faixas: 9
Produção: Steve Jordan
Gravadora: Verve

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

Soul music é tão forte e delicada que deveria ser protegida. Mas, paradoxalmente, é algo tão forte e poderoso, que tem a propriedade de nos proteger. E nesses desvarios da vida e da palavra, encontra-se o mais novo álbum de Bettye Lavette, “Blackbirds”. A veterana cantora, cuja carreira começou ainda nos anos 1960, ganhou poder de fogo redobrado a partir somente dos anos 2000, quando iniciou uma sequência de álbuns que parte de “Let Me Down Easy: In Concert” (2000) e vai até este ótimo “Blackbirds”. Ao longo deste tempo, Bettye lançou discos em que reviu canções do rock britânico dos anos 1960 e do repertório de Bob Dylan – o ótimo “Things Have Changed”, de 2019 – e vai pela mesma ideia neste novíssimo e belíssimo “Blackbirds”. Aqui, no entanto, Lavette mergulha fundo em canções interpretadas por mulheres negras ao longo do tempo. A exceção é, justamente, “Blackbird”, dos Beatles, que se refere às moças negras e praticamente dá nome ao álbum. Preparem-se para uma jornada impactante.

 

Sabemos bem que o mundo é um lugar desigual e como isso pesa sobre os ombros das mulheres negras, estes seres tão especiais e belos. Partindo deste pressuposto e, em meio ao turbilhão de preconceito que invadiu as pautas do mundo, Bettye, ela mesmo uma senhora afro-americana, empresta seu talento e profundidade a canções que já rodaram o mundo nas vozes de gente como Dinah Washington, Billie Holiday, Della Reese, entre outras, tendo como um sutil conceito a jornada destas mulheres neste mundo em busca de amor, lidando com as perdas e com a falta de direitos civis numa sociedade branca, racista e desigual como a americana. Ou a nossa…

 

Para levar adianta tal empreitada, Bettye se serve de seu registro entre o jazz e o soul e confere interpretações marcantes, mesmo em faixas mais conhecidas, como “Strange Fruit”, imortalizada por Billie Holiday há mais de 80 anos. Não custa lembrar que o “strange fruit” do título se traduz no hábito dos americanos de, após linchar negros, os penderarem em troncos de árvores, como… frutos estranhos. E a faixa dos Beatles, um standard de Paul McCartney, ganha dimensão renovada, sob o andamento lentíssimo de blues, com acompanhamento de um quarteto de cordas e instrumental mínimo. O resultado é arrepiante e só mostra como uma obra pode conter sentidos e significados ocultos por tanto tempo – “Blackbird” já tem 52 anos, gente.

 

Bettye não hesita em utilizar algumas levadas de funk ao longo do álbum, mas que surgem muito bem posicionadas, porque, afinal de contas, isso aqui não é pra se dançar de qualquer jeito. A abertura, com “I Hold No Grudge”, de Nina Simone, também embarca nessa levada funk sutil, especialmente calcada nos Fender Rhodes e na guitarra levemente psicodélica. Em “Blues For The Weepers”, há guitarras em wah-wah e pianos elétricos sob a voz dela, cadenciando e fornecendo sutilezas novas. E há detalhes como o meio minuto inicial de “Book Of Lies”, no qual ela canta à capella, para depois receber o aconchego do acompanhamento instrumental.

 

“Blackbirds” é um disco reflexivo, noturno, desses que a gente ouve pra pegar força, entender o mundo através das mais belas e tristes canções, percebendo as emoções que fluem através delas ao longo do tempo. E depois, reenergizado, levantar e fazer alguma coisa relevante. É um discaço.

 

Ouça primeiro: I Hold No Grudge

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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