As fronteiras de Milton Nascimento

 

 

Minas Gerais não tem mar e nem fronteiras internacionais. É nesse lugar, cercado dos mais diferentes Brasis, lusófono de convicção e longe demais das hispanófonas belezas, que se consagra uma das mais belas e cosmopolita música de nosso continente. Banhado pelo Pacifico do Chile e pelo Atlântico que nos conecta à África, a musicalidade das montanhas é a tradução de tudo que poderíamos ser e fugimos, como um narciso às avessas com medo da cultura refletida nos ouvidos atentos. Desse cenário, emerge uma das vozes mais bonitas e sensíveis do mundo, cujo papel é unir as culturas diaspóricas de todos os lugares. Do jazz ao samba, da bossa ao rock, Milton Nascimento é o exemplo de como não deixar passar nada despercebido no seu caleidoscópio musical. Um carioca mineiro que sem mar no horizonte fez questão de enxergar toda a complexidade musical presente nas mais diferentes culturas. Voltando à América-Latina, Milton se tornou um veículo para canções importantíssimas para o nosso povo, mas apartada por nossa anglofilia sedenta. Esse texto é um convite para compreendermos parte da produção cultural de nosso povo através da curadoria majestosa de Bituca.

 

De início, é impossível falar da conexão de Milton com a música latino-americana sem mencionar a sua relação com Mercedes Sosa. Bituca e La Negra, como eram chamados, se conheceram por intermédio de Vinícius de Moraes. Em uma de suas apresentações, Mercedes teve em sua plateia os dois ícones da cultura brasileira. Boquiaberto com a majestosa aparição da cantora, Milton ficou acanhado ao aceitar o convite de seu amigo para conhecê-la em seu camarim. Com muito medo, mas puxado pelos braços pelo poetinha, ele entra e se surpreende com a reação de Sosa: “Milton!”, exclamou. Incrédulo de que alguém daquela magnitude pudesse o conhecer –lembrando que a essa altura, ele já havia tocado com a nata do jazz estadunidense-, ele a indaga “você me conhece?”. Essa história é contada para o cantor Fena Della Maggiora no programa Músicos de Latinoamérica, no canal estatal argentino Encuentro, tornando-se o prefácio perfeito para uma parceria tão forte e marcante da nossa música. Posteriormente, os dois gravaram no disco Geraes (1976) uma das pedras fundamentais da música chilena: Volver a Los 17. Canção da gigantesca e pouco falada no Brasil, Violeta Parra. A cantora, folclorista, compositora e artista plástica chilena, tem entre os seus feitos notáveis, a encarnação inicial da música engajada politicamente na América-Latina, além de ter sido a primeira artista do continente a ter uma exposição individual no museu do Louvre. Só nessa faixa já conseguiríamos consolidar o quão fundamental é essa parceria.

 

Entretanto, não pararam por aí.

 

Outro ponto fundamental que corrobora com o que está sendo dito, é a apresentação de um dos compositores e intérpretes mais célebres da América-Latina, o cubano Silvio Rodriguez. Ainda em parceria com La Negra, Bituca grava em seu disco Sentinela (1980) a música Sueño Con Sierpientes, uma canção densa e que mostra todo potencial das duas vozes contrastantes juntas. O compositor da canção é outro dos artistas que transcendem nosso continente e ganha reverência em todos os países de língua hispânica. Rodriguez surge dentro de um movimento conhecido como Nueva Trova Cubana, um movimento de músicos jovens que pretendiam captar a essência fundamental da já consolidada trova como canção que representava os signos nacionais do país, trazendo-a para um novo público através de influências atualizadas. Com canções como Ojalá, Playa Girón e Pequeña Serenata Diurna, sendo esta última gravada por Chico Buarque em seu disco homônimo que possui algumas gravações de músicas censuradas pela ditadura militar, Silvio consegue lotar estádios pelo continente, sendo um popstar de marca maior, mas profundamente negligenciado por nossa anglofilia voraz.

 

Além das já citadas canções e os compositores gravados por Milton, temos a inesquecível Dos Cruces, gravada no Clube da Esquina (1972), um bolero tenso com toda a dramaticidade exigida pela composição do espanhol Carmelo Larrea. Uma outra música a ser mencionada é o hino Canción por la unidad latino-americana, composta pelo também cubano e parceiro de Silvio Rodriguez, Pablo Milanés. Aqui, a letra aparece em uma versão traduzida e adaptada a um contexto mais familiar aos nossos ouvidos. A letra original faz menção a José Martí, líder revolucionário da segunda metade do século XIX que lutou contra o colonialismo espanhol, e a Fidel Castro, líder da revolução de 1959.

 

Bom, é necessário parar em um dado momento, uma vez que existem poucas coisas tão apaixonantes como a obra de Milton que, mesmo em um recorte específico, faz com que nos alonguemos no assunto. O fato é que uma das coisas mais belas dessa discografia é justamente nos aproximar de lugares que podem nos parecer inacessíveis e, por muitas vezes, romper fronteiras e paradigmas linguísticos, acabando com essa bobagem de fechar os ouvidos para o que vem dos países de línguas espanhola. Vale lembrar que Milton fez Mercedes, ferrenha defensora do canto em espanhol, cantar suas músicas também. Por fim, a lição que fica é que apesar de Minas pulsar no coração do Brasil, suas artérias rompem fronteiras.

Alexandre Gallego

Alexandre Gallego é Publicitário de formação e pós-graduando em Filosofia Política, Ética e Contemporaneidade. Paulista por acidente, mas brasileiro por amor. Ama as notas dissonantes nos acordes de um saudoso João e a filosofia de asfalto de um tal Dylan. Um jovem nessa década que busca em outras as respostas para o agora.

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