“Armadilha” é Shyamalan dos bons
M.Night Shyamalan é como aquela banda de rock que já tem bastante tempo de estrada. Há bons e ótimos álbuns, como também há momentos constrangedores que todos preferiam esquecer. No caso do diretor americano, ele despontou para o sucesso mundial a bordo de “O Sexto Sentido”, há 25 anos, dando novas dimensões para os chamados “filmes de fantasmas”, bem como abrindo espaço para um ator conhecido do público – Bruce Willis – se reinventar. Bruce gostou tanto do resultado que voltou a trabalhar com o diretor em “Corpo Fechado” (2000) e em “Vidro” (2019). Em sua carreira, Night foi capaz de altos impressionantes, como os próprios “Sexto Sentido” e “Corpo Fechado”, de boas realizações (“A Vila” [2004], “Sinais” [2002], “Fragmentado” [2016], “A Visita”[2015]) e de bombas inacreditáveis como “Fim dos Tempos” (2008), “Depois da Terra” (2013) e “Tempo” (2018). Ou seja, o sujeito é capaz de tudo e, mesmo com essas manchas no currículo, sempre que um longa seu chega ao cinema, há uma expectativa, um burburinho e uma esperança por uma reedição de seus bons momentos. Bem, “Armadilha” está longe de ser um clássico absoluto, mas é daqueles filmes redondos, interessantes e que até te levam a fazer vista grossa para alguns deslizes de roteiro.
O longa traz a história de Cooper (Josh Hartnett, impressionante) e sua filha, Riley, (Ariel Donaghue), que estão indo a uma apresentação da cantora Lady Raven (Saleka Shyamalan) numa arena na Filadélfia. Em meio à excitação e ao frenesi do evento, Cooper, que está lá apenas para acompanhar a filha, começa a notar que há alguma coisa estranha no lugar, especialmente pela grande quantidade de policiais presentes por todos os cantos. Logo ele fica sabendo – de uma forma, digamos, fácil demais – que o contingente policial está ali porque todo o show é, na verdade, uma armadilha para capturar um serial killer que está aterrorizando a cidade, The Butcher. Deste momento – em algum ponto dos dez primeiros minutos do filme – em diante, ficamos sabendo que Cooper é, na verdade, o próprio assassino. Muita gente poderia pensar que tal revelação estragaria o filme, mas, na verdade, ela dá início a uma nova perspectiva para todos os eventos que começam a ocorrer, fazendo com que Shyamalan entre numa linha fina entre suspense e thriller policial.
Aos poucos o cerco vai se fechando e as saídas possíveis para o bandido vão sumindo, mas, ao contrário do que poderia ser esperado, ele vai lidando muito bem com todas as situações. Daí o que sobra para o espectador é o desejo de saber como o malandro irá dar conta de todos os problemas táticos e logísticos, até que, como é peculiar em filmes do diretor americano, há uma reviravolta no roteiro que abre uma nova perspectiva para a trama, num ato que, ainda que seja sensacional, quase põe tudo a perder em termos e coesão. O roteiro e a produção também são de Night e ele faz tudo como sempre fez – parecendo se divertir. Suas marcas registradas estão lá – os closes, os enquadramentos amplos, o ritmo acelerado e, claro sua aparição-surpresa em algum ponto da ação. Mais que tudo isso, “Armadilha” tem méritos muito mais intensos, começando pela escolha de Josh Hartnett para viver o papel principal. Hartnett deveria ser um dos grandes galãs de sua geração, mas ficou no meio do caminho, talvez por ser bom ator além da conta. Recentemente ele estrelou “Beyond The Sea” um dos melhores episódios da sexta temporada de “Black Mirror”, além de integrar o elenco de “Oppenheimer”. Sua atuação está no ponto e dá pra dizer que ele carrega uns 80% do filme sozinho.
Outro ótimo detalhe é a presença de Saleka Shyamalan, que é cantora e tem uma carreira regular há alguns tempos. Ela interpreta Lady Raven, a meio caminho entre Taylor Swift e Lady Gaga e é o grande objeto de desejo de Riley, filha de Cooper. Seu papel evolui com o filme e, em algum ponto da ação, ela deixa de ser pano de fundo sonoro para assumir uma posição mais interessante na narrativa. E também há a presença de Alisson Pill, excelente atriz das primeiras temporadas de “Star Trek: Picard” e de filmes como “Milk” e “Scott Pilgrim”. Ainda que ela apareça muito pouco, seu papel é de importância crucial para a amarração de fatos da trama.
“Armadilha” não vai mudar o mundo mas, se voltarmos ao paralelo entre M.Night Shyamalan e sua banda de rock preferida, daria pra dizer que este aqui é um ótimo disco menor, bem realizado, original e cheio de mérito. Dá pra ver e gostar bastante.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.