A beleza atemporal do novo álbum de Zé Manoel
Zé Manoel – Coral
37′, 14 faixas
(Independente)
É cedo, mas é possível afirmar que “Coral”, de Zé Manoel, irá disputar o topo das listas de melhores álbuns nacionais deste ano. Seu principal concorrente deverá ser o impressionante “Y’Y” de Amaro Freitas. É sintomático que dois artistas negros, pernambucanos, jovens e pianistas estejam nesta contenda, justamente porque, tanto Zé quanto Amaro são dois dos maiores talentos surgidos em nossa música por muito, muito tempo. Longe de qualquer concorrência, os dois são amigos e colaboradores, acabaram de viajar pelo país com um belo espetáculo no qual recriavam canções do “Clube da Esquina” em novíssimos arranjos. A diferença está na abordagem estética. Se Amaro é um jazzista de primeira grandeza, em franca ascensão no exterior, Zé é um artista mais introspectivo e com outras aspirações. Suas composições são refinadíssimas, trazem elementos que vão fundo no baú da música brasileira que importa e, como se não bastasse o bom gosto em escolhas, arranjos e timbres, ele se mostra um compositor de mão cheia. Se o trabalho anterior, “Do Meu Coração Nu”, chegou a ser o nosso escolhido como melhor álbum brasileiro de 2020, este “Coral” consegue ampliar o que já era vasto e belo.
A música de Zé Manoel é adorável e cheia de detalhes. Sua voz é forte, porém capaz de sutilezas e falsetes. Sua técnica com o piano é forjada no clássico, mas tem muito de música brasileira de outras épocas, pitadas de jazz e o resultado é um amálgama interessante original, especialmente para ouvidos mais atentos. Suas canções têm aura mística e espiritual, que foi evoluindo com o passar do tempo. Seu segundo álbum, “Delírio de Um Romance a Céu Aberto”, de 2016, trazia várias participações especiais, de gente como Elba Ramalho, Ana Carolina e Fafá de Belém. Quando chegou o trabalho posterior, o sublime, “Do Meu Coração Nu”, lançado quatro anos depois, em plena pandemia, a música de Zé já era mais focada e orientada para esta busca. Aqui os participantes já eram diferentes – Luedji Luna, Beatriz Nascimento, até o sensacional – e saudoso – maestro Letieres Leite. Sendo assim, é natural que “Coral” seja ainda mais focado e orientado. Além disso, o álbum incorpora um interessante apreço pela música da diáspora negra, especialmente a música negra americana dos anos 1960 e 1970, algo que tem parte de sua materialização em duas faixas com letra e título em inglês.
“Golden”, que abre o álbum, tem participação da cantora Gabriela Riley, e um andamento de soul jazz elegante de natureza stevewonderiana, com uma levada adorável, fluida e que chama a atenção aos primeiros acordes. A lindeza da canção é tão grande e tudo parece acontecer de forma tão natural que até perdemos a conta do tempo e chegamos a levar susto quando ela acaba. Certamente é uma das canções do ano. A outra faixa em inglês, “Above The Sky”, também investe nesse timbre setentista ianque, com um arranjo precioso que reverbera tanto a voz grave do cantor quando intervenções belíssimas de cordas, que adornam a melodia que sai planando das caixinhas de som e logo fazem um balé imaginário. É uma delicadeza talentosa que está seriamente em extinção na nossa música pop. O sotaque brasileiro no inglês da canção é um charme que descende da mesma matriz de João Gilberto cantando bossa nova nos Estados Unidos de 1963.
Falando em bossa nova, é digna de menção a lindíssima “Carta de Amor Para Johnny Alf”, que, como o nome já diz, é homenagem ao cantor carioca precursor do estilo, que deveria ser muito mais lembrado. A letra, do próprio Zé Manoel, segue o tom de admiração apaixonada pela figura do artista, morto em 2010 e que deixou sua assinatura em canções lindas como “Eu e a Brisa”. O tributo sai da mesmice por conta de outro arranjo celestial, com espaço para tons baixos, bateria jazzística, cordas e toda uma ambiência sutil que relembra os espaços para o silêncio que a própria bossa nova oferecia. Além disso, temos o aceno generoso para a inspiração africana, que se materializa de formas distintas. Em “Malaika”, uma canção tradicional da Tanzânia, Zé Manoel presta homenagem à cantora Miriam Makeba, que fez uma versão pop da melodia e da letra tradicionais. Também temos a balançada e sensacional “Iyá Mesan”, dueto com Alessandra Leão, homenagem a Iansã e o samba tradicional adornado com pegadas tradicionais e visão jazzística, com vocais em canto-e-resposta. Há uma parceria belíssima com Liniker em “Deságuo Para Emergir”, canção em tom tristonho daquelas que abraça a miséria, numa intenção de “chorar para ficar mais leve e voltar à superfície”.
Este “Coral” é um trabalho exuberante, multifacetado, de um artista que já deixou de ser promessa e é forte realidade na música nacional. Ouçam, passem adiante e preparem-se para encontrar Zé Manoel nas listas de melhores de 2024. Nada será mais justo.
Ouça primeiro: o álbum todo é primoroso.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.