Nossa crônica na ressaca do Rock In Rio
Você deve ter notado, caro/a leitor/a, que não dedicamos espaço algum para a edição mais recente do Rock In Rio. Houve vários motivos para isso, mas, assim que vimos a escalação completa do evento para sua versão 2024, justo aquela que celebraria os quarenta anos do festival, notamos que um novo paradigma de diversão e orientação comercial havia sido adotado pela organização. E, imediatamente, deixou de nos interessar. Talvez fosse, finalmente, a materialização de uma orientação que já se insinuava, cada vez mais forte, desde a edição de 2011, quando o Rock In Rio iniciou sua trajetória rumo a se tornar algo como um parque de diversões temático e não mais um festival de música. Hoje em dia, há mais semelhanças com o Beto Carrero World do que com, vejamos, o Coachella ou o Glastonbury.
Este processo requer uma consolidada experiência de mercado, algo que a família Medina tem de sobra, um “talento” que passou das mãos de Roberto, irmão do deputado conservador Rubem Medina, um dos fundadores do PFL nos anos 1980, para sua filha, Roberta. Ao longo do tempo, ela foi assumindo as funções do pai, levando adiante a missão de tornar a ida ao Rock In Rio mais uma “experiência” do que qualquer outra coisa. Ao estabelecer esse processo, foram gradativamente limadas do espectro situações indesejadas como “decepção”, “descontentamento”, “senso crítico”, e outras instâncias que fazem parte do ato de ver um show de música. Sabemos bem que, na vida real, isso não é algo necessariamente positivo o tempo todo e tudo bem, faz parte, a gente aprende com isso. Mas, quando falamos de “experiência”, já não é mais possível. E se você, mesmo diante de todo o aparato utilizado, não curtiu, ora o problema deve ser seu.
É fácil incorrer num clichê indesejado quando se critica o Rock In Rio, o dos imbecis que cobram do evento escolhas que honrem o seu nome. Nem na primeira edição, de 1985, este critério foi utilizado. Havia uma forte presença de artistas brasileiros que não eram vinculados ao estilo e, pelo menos, três nomes internacionais de peso, que também não eram “rock”: James Taylor, Al Jarreau e George Benson. Sendo assim, cobrar “rock” no Rock In Rio é passar atestado de idiotia. Mas, o que se pode – e deve – cobrar é a presença de atrações relevantes. Dá pra dizer que até a terceira edição, em 2001, o evento trouxe nomes de peso e conseguiu proporcionar ao público a oportunidade de ver atrações que estavam em ótimos momentos em suas respectivas carreiras, como Guns’n’Roses, Metallica, George Michael, Faith No More, Iron Maiden, Prince, Oasis, Beck, Cassia Eller, sem falar em medalhões como Bruce Springsteen, King Crimson, Stevie Wonder e Neil Young. De 2011 para cá, o festival foi, sob alegação de sintonizar-se com as tendências do mercado fonográfico, deixando a relevância dos artistas em segundo plano, repetindo atrações de uma edição para outra e colocando em xeque a relevância artística do evento. Veja, nada tem a ver com números e com ações mercadológicas ou algo assim, estamos falando de música.
Até bem pouco tempo, havia um tabu sobre a presença de outro gênero que não fosse o pop rock no Palco Mundo, o principal do evento. A escalação de Anitta na edição de 2019 abriu as portas para o funk nacional adentrar este lugar, algo que já havia acontecido com o axé pop alguns anos antes, pelas mãos de Claudia Leitte e Ivete Sangalo. Nesta última edição, o sertanejo pop chegou ao evento, com presença de artistas como Chitãozinho e Xororó e Ana Castela. É bom lembrar que o Rock In Rio se enxerga como uma marca mundial, o que significa dizer que os Medina competem num mercado acirrado e muito disputado, no qual é preciso oferecer diferenciais que justifiquem o produto que oferecem. No caso do Rock In Rio, qual seria este diferencial? O que estaria em jogo na hora de um contratante escolher o evento? Sabemos que a cidade de Lisboa, capital portuguesa, sedia o evento há vinte anos e o formato é bem parecido com o que temos no Rio, mas, por outro lado, o Rock In Rio não emplacou em Las Vegas.
Arrisco dizer que o diferencial é o modelo híbrido de “experiência”, no qual também há espaço para a música. O próprio Medina disse em entrevista à Revista Época, em 2017, que o “Rock In Rio é 55% experiência”, se vangloriando do lucro certo, proporcionado pela compra antecipada dos ingressos, em que os consumidores adquirem o acesso à Cidade do Rock, independente de quem vai tocar no dia escolhido. É uma questão de lógica matemática simples a constatação de que a música é menos importante na ordem de fatores que compõem o Rock In Rio. E tudo bem, não há nada errado nisso, é um produto na prateleira, que segue sendo comprado, muito por conta da inexistência de outras oportunidades para um público desinformado poder ter contato com atrações internacionais de nível mínimo. O espaço se transformou em algo que os pais visitam com seus filhos, levam crianças para a primeira experiência num show de música, enfim, é como se fosse um passeio ao bondinho do Pão de Açúcar.
Num raciocínio simples, pergunto a vocês. Se o Rock In Rio é um lugar em que, segundo seu próprio idealizador, a música importa menos do que a experiência, que tipo de artista se interessaria em participar do festival? Haveria alguém interessado ou disposto a oferecer seu show para uma plateia que, provavelmente, irá aplaudir qualquer coisa, justamente porque desconhece – ou conhece bem pouco – do que está acontecendo? Na edição deste ano, talvez apenas o cantor pop britânico Ed Sheeram seja um artista em boa forma no mercado. Ainda que sua obra seja enfadonha e empobrecida, ele segue no topo das paradas e ativo no mercado de lançamento de discos e shows. Também tem o canadense Shawn Mendes, que me parece em declínio há alguns anos. E só. Katy Perry, cantora americana que já esteve no festival em 2013, já vive uma longa decadência artística e, ao lado de Sheeram e Mendes, compunha o trio de maior relevância do evento, com o grupo de pop espetáculo Imagine Dragons vindo pouco atrás. Nunca essa oferta foi tão pobre e certamente marca um abraço da organização a artistas mais orientados pelo pop simplório e milionário, medido por cliques e likes. As atrações rock foram de grande irrelevância, encabeçadas pelo redivivo Journey e bandas sofríveis como Avenged Sevenfold e Evanescence, que já estão obsoletas há, pelo menos, dez anos. No Palco Sunset, dois nomes também já ultrapassados, mas que poderiam estar no palco principal: Mariah Carey e Deep Purple, certamente melhores do que gente como Ne-Yo ou Zara Larsson. Além da pobreza de nomes relevantes, o evento abriu as portas para o trap, o pagode e para a apresentadora xuxa, num movimento midiático do banco itaú, difícil de defender quando pensamos em relevância artística. Em meio a tudo isso, algo que valeu a pena: o emocional encontro entre Pato Fu e Penélope, além da ótima apresentação da banda brasileira Black Pantera, mas quando ela sairá dos palcos menos importantes e irá para o principal?
Ainda assim, depois de quase quarenta anos do primeiro festival, o Rock In Rio traz uma forte memória ao público brasileiro. Ele foi o primeiro evento no qual uma quantidade significativa de bandas e artistas estrangeiros em boa fase mercadológica e artística veio ao Brasil. E a presença do evento ao longo desse tempo, firmando-se como uma atração bienal há treze anos, constituiu num objetivo a ser alcançado para artistas independentes. Ainda é ótimo para eles aparecer no evento, mesmo que seja em palcos secundários e engolindo todos os sapos possíveis. Ainda que haja uma atitude subserviente nesse comportamento, ele existe e não parece dar sinais de que irá desaparecer. Ele também acontece com veículos de comunicação alternativos e/ou independentes, que, mediante aderência total às pautas do evento, sejam elas quais forem, trocam sua identidade em favor de acesso ao festival, em busca de uma xepa de oportunidade de competir com megaveículos estabelecidos, que fazem uma cobertura asséptica e desinformada. Ou seja, o ambiente que envolve o Rock In Rio é desinformado por natureza, conta com a conivência de várias pessoas, que poderiam questionar escolhas adotadas, mas que compõem com a lógica sistêmica do evento.
Sem muito esforço de pensamento, seria possível pensar em nomes como Keane, Killers, Strokes, Legião Urbana, Samuel Rosa, Nando Reis, Alice In Chains, Janelle Monae, Camila Cabello, Duran Duran, Gojira, Adele e Lady Gaga, todos em turnês pelo mundo em algum momento deste ano, que seriam capazes de acrescentar um mínimo de relevância artística para este evento, que deixou pelo caminho um monte de aspectos positivos para se transformar em algo que, sinceramente, me parece irrecuperável.
É uma pena.
Ou não.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.