Três discos de verão no fim do verão

 

 

Se você tem redes sociais, já sabe que logo surgirão aqueles memes engraçadinhos dizendo que “são as águas de março fechando o verão”. E, se você lembra das aulinhas de Geografia, sabe que, se aqui é verão, lá no Hemisfério Norte, é pleno inverno. Mas, tudo bem, o conceito “música de verão” é, digamos, universal. A gente – que fica ligado no que surge de novo e bom na música – sempre gosta quando surgem o que chamamos de “discos de verão”, álbuns com uma sonoridade arejada, animada, geralmente com um leve toque retrô. Sim, porque, o verão – e este é um conceito importado lá de cima – significa liberdade, felicidade, férias e saudade, especialmente para povos que vivem mais da metade do ano passando muito frio. O Brasil, todo mundo sabe, é um caldeirão térmico na maior parte do ano, o que, no nosso caso, faria de todo e qualquer álbum lançado aqui, um “disco de verão”. A gente então pega a licença poética e térmica/emocional dos europeus e americanos para analisar trabalhos de bandas novas e velhas que se entregam ao verão musical. E, como somos baseados pela emoção total, os álbuns que vamos indicar aqui são belos, razoavelmente felizes, dançantes e nos empurram para passear no parque durante a tarde, esperando que o sol não esteja tão forte, porque verão confortável é aquele em que dá pra sentir uma brisa salvadora de vez em quando.

 

 

Temos então três álbuns que podem ser entendidos como “discos de verão” e são trabalhos lançados por gente nova, de quem provavelmente, você ainda não ouviu falar. São duas bandas americanas e uma francesa, que fornecem passagem só de ida para um mundo azul, ideal, bom e do qual vai ser difícil voltar. São eles: “Echoes Like Memories”, do duo Boyo, de Los Angeles; “XVI”, do grupo Seafoam Walls, de Miami e, fechando a linha, “Sun”, do grupo Pastel Coast, da cidadezinha de Boulogne-sur-Mer, no norte da França. São três discos que vão colocar um sorriso no seu rosto, fazer olhar para o céu azul e dar um suspiro de satisfação por estar vivo, apesar dos pesares. Afinal de contas, “discos de verão” foram feitos para dar esta forcinha necessária de tempos em tempos.

 

 

Começando com “Echoes Like Memories”, do Boyo, que nem é um “disco feliz” em essência. Na verdade, este é um trabalho em que o líder cerebral da banda, Rob Tilden, meio que exorciza demônios pessoais, especialmente a solidão. Só que ele cumpre esta tarefa com garbo, felicidade e dança. São guitarras, sintetizadores e vários vocais sobrepostos nas dez faixas do disco – que é curtinho, dura 26 minutos. É como se Tilden estivesse usando as letras apenas como motivos para cantar algo em meio aos instrumentais solares que ergue ao longo do álbum. Tudo parece bem propício para um passeio na praia quando a tarde já está caindo e o sol vai se por logo. Em alguns momentos surgem saxofones sintetizados, tudo é acompanhado por uma bateria igualmente sintética e, não sei por que motivo, o clima do álbum me lembrou um pouco da nostalgia tristonha de “Her”, aquele filme em que Joaquim Phoenix se apaixona por um sistema de computadores que tem a voz de Scarlett Johansson. Se pensarmos no longa de Spike Jonze, veremos que ele é tristemente alegre e solitário, algo que se encaixa sob medida aqui. Se você quiser ir direto numa faixa específica de “Echoes Like Memories”, recomendo “Crazier”, a terceira e “Lose My Mind”, que vem logo em seguida. Você vai entender exatamente o que estamos falando.

 

 

 

 

Já “XVI”, a estreia em disco do quarteto Seafoam Walls, é uma outra … onda. O bacana aqui é ver como o grupo relê alguns gêneros musicais como jazz e eletrônica, misturando com pop, shoegaze e o sol do Caribe. Tudo de guitarras e teclados que ouvimos ao longo das oito faixas, aponta para uma visão solar e de amplo espectro da musicalidade que sai dos fones de ouvido. E os vocais, a cargo de Jayan Bertrand, Dion Kerr, Joshua Ewers e Josue Vargas, tudo devidamente mixado como se fossem um só coro vaporoso e tristonho. A banda gosta de dizer que não soa como nenhuma outra em Miami e isso deve ser verdade, porque a sonoridade do SW é diáfana e psicodélica, abrindo espaço para abstrações e viagens mil. “You Can’t Have Your Ego And Cake Too (Happy Anniversary)” é, com toda a certeza, a mais surpreendente canção de parabéns a você ouvida recentemente. As faixas se dobram umas sobre as outras, se misturam e se confundem, sem falar que quase todas mudam de andamento sem aviso prévio. “Al”, por exemplo, tem barulhos que podem ser de ondas do mar, mas que também soam como efeitos estranhos enquanto uma guitarra cheia de beleza litorânea vai sendo dedilhada. “Dependency” é uma pequena explosão jazz-hip hop como você nunca ouviu, urbana e solar ao mesmo tempo, um troço inesperado e híbrido. Aliás, este é um disco de verão que também é total flex.

 

 

 

 

Fechando a trinca, temos “Sun”, do quinteto Pastel Coast. De cara, já no título, já é possível perceber que este é um “disco de verão” legítimo e assumido. Quem pilota o grupo é o vocalista e tecladista Quentin Isidore, que entende a música que faz como um híbrido synthpop com ares nostálgicos e belos. De fato, há ecos de bandas francesas bacanas de nostálgicas no trabalho do Pastel Coast, especialmente o Air fase “Moon Safari” e o Phoenix atual. Mas há muito mais do que isso para ser visto e ouvido. “Sun” é o segundo disco dos caras, sucedendo o igualmente belo e solar “Hovercraft”, lançado em 2019. Neste novo álbum é possível perceber uma verve quase conceitual sobre esse sentimento solar. As canções têm títulos como “Sunrise”, “Sunset”, “Distance” sempre com uma única palavra para nomeá-las. Além disso, dá pra perceber a belezura da estação em faixas como “Helios” e “Radiant”, mas nem tudo é felicidade, vide “Funeral” e a bonus track “Saudade”, sintomática e bela. A lindeza maior do disco fica por conta da mescla entre “Aller” e “Retour”, lá no meio do álbum.

 

 

O verão emocional, musical e abstrato não é essa fornalha existencial que nos cozinha todos os dias. É um quentinho no rosto, como abraço de mãe, sob o céu perfeito, esperando o momento para explodir de felicidade, sem notar que já se é feliz naturalmente. É quase a inevitabilidade da belezura, uma coisa que fez o vetusto escritor franco-argelino escrever que, “foi nas profundezas do inverno que descobri em mim um verão invencível”. É isso. Bons sons.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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