O novo e inédito som de Benjamin Booker

 

 

 

 

Benjamin Booker – Lower
42′, 11 faixas
(Thirty Tigers)

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

“Desilusão, desilusão…” já cantava Paulinho da Viola em sua “Dança da Solidão” no início dos anos 1970. É uma das belezas da arte a capacidade de converter sentimentos e vivências tristes em algo que vá dar ao público-alvo uma sensação de prazer ou beleza ou algo que não seja próximo do sofrimento que o artista experimentou ao compor sua obra, seja ela qual for. Não sei se Benjamin Booker chegou a racionalizar esta impressão, mas, o que posso afirmar é que este seu terceiro disco marca uma nova fase em sua carreira. Mais ainda – e isso não acontece sempre: apresenta uma nova sonoridade que quase anula completamente o que ele havia feito até aqui. Em seus dois álbuns anteriores, “Witness” (2017) e “Benjamin Booker” (2014), ele parecia alguém que disputaria espaço com Gary Clark Jr e similares, ou seja, era mais um reinventor da abordagem blues para a modernidade do século 21, procurando maneiras de convertê-la em algo que comunicasse com a realidade dos afro-americanos de hoje. Em “Witness”, por exemplo, Booker adicionava doses de rock de garagem, letras de protesto e uma fúria que apontava para algo ainda mais intenso no próximo disco. De alguma forma, “LOWER”, este terceiro e inesperado álbum, chega para mudar o jogo. E ganhá-lo.

 

Se em “Witness” havia fúria e abrasividade por meio de guitarra, baixo e bateria, “LOWER” redefine tudo: ainda há guitarra – muita, até – mas há teclados, sonoridades estranhas, argamassas sonoras que herdam do grunge e do trip hop em doses iguais e uma imensa, palpável, inapelável desilusão. Booker havia embebido seu blues das agruras e tristezas do mundo há sete anos, mas, imagine o tanto de coisas que aconteceram de lá pra cá. Dois governos trump, pandemia, big techs, destruição, mortes, acirramentos de todos os tipos. Por isso, “LOWER” soa como um lamento sob a luz da lua, sem qualquer esperança de redenção. Talvez a ideia do álbum seja soar ele mesmo como esta redenção, este aceno à mudança, algo assim. Porque, se há algo notável por aqui, é a absoluta coragem de Booker em largar tudo o que caracterizava sua obra até agora e abraçar a novidade total sem qualquer medo. Mérito e coragem ele, mas, justiça seja feita, boa parte deste crédito deve ser dado ao produtor Kenny Segal, oriundo das fileiras do hip hop contemporâneo, certamente a maior fonte de inovação sonora que existe hoje. Juntos, os dois redefiniram tudo.

 

Booker disse em entrevista à Rolling Stone que burilou a sonoridade de “LOWER” a partir de duas fontes inspiradoras díspares: “Psychocandy”, do Jesus And Mary Chain e “Hell On Earth”, terceiro álbum da dupla de rap Mobb Deep. Aparentemente seria impossível juntar sonoridades tão diferentes numa terceira – e inédita – forma de som. A presença de Segall e a sua familiaridade com o beatmaking do rap underground mudou o jogo e viabilizou quase tudo. Nessa altura, Booker já estava envolvido com audições contínuas de My Bloody Valentine e Velvet Underground. O resultado é essa liga sonora quase inclassificável, com muito uso de sintetizadores fazendo sons de baixo e timbres graves intermediários, além da guitarra de Booker, que parece ter sido abduzida e devolvida à Terra como se fosse um episódio de Arquivo X. A sensação é de, realmente, ouvir algo novo e, sabemos bem, isso é ouro em qualquer tempo, especialmente hoje. Agora. Além disso tudo, o guitarrista também acumulou paternidade, casamento e sobrevivência na pandemia da covid-19 morando na Austrália. Grande parte do trabalho com Segall foi online, o que torna “LOWER” ainda mais sensacional.

 

Todo o álbum é absolutamente maravilhoso. A sonoridade é inquietante, misteriosa, noturna e mutante. Em “Black Opps”, cujo nome define tanto operações militares secretas quanto incursões policiais em territórios afro-americanos nas cidades, Booker apresenta os vocais sussurrados que usará por quase a totalidade das canções. A guitarra processada, a batida seca, o tom noturno, tudo irá permanecer até o fim. Em alguns momentos ganhará a dimensão de algo absolutamente genial, como em “Pompeii Statues” (meio acústica em meio ao tremor de batidas) ou em “Slow Dance In A Gay Bar”, que tem soterrados tiques e taques de soul pop de FM setentista. Em “New World”, Booker chega no topo da montanha, em sua melhor canção, seja pelo minimalismo do sintetizador, seja pela voz que vem das entranhas, porém é silenciosa, seja pelas batidas expressivas. Em “Same Kind Of Lonely” entra em cena uma guitarra grunge que parece depurada e filtrada ao máximo, restando apenas sua abrasividade silenciosa, se é que isso é possível.

 

“LOWER” é misterioso, inquietante, genial. É o desabrochar de um artista jovem, corajoso e cheio de surpresas. Não percam.

 

Ouça primeiro: todo o álbum.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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