“Re” é o melhor álbum do rock latino americano?

 

 

No Brasil, 1994 será lembrado como um ano maravilhoso na cena musical do rock. Bandas antológicas fazem suas estreias em álbuns: Raimundos, Mundo Livre S/A, Chico Science & Nação Zumbi, O Rappa…

 

Uma característica que atravessa essas produções era a mistura. Depois das guitar bands (um exemplo, dos melhores: Second Come), o rock não apenas voltava a ser cantado em português, como era salvo por um novo encontro com as “raízes do Brasil”.

 

 

 

 

Gostamos de pensar que isso foi algo singular. Mas bastava olhar ao redor para perceber que a ideia de um rock hibridizado por gêneros e marcas locais não foi uma jabuticaba.

 

Uma das mais perfeitas demonstrações disso é Re, segundo álbum da banda mexicana Café Tacvba. Suas 20 faixas começam com algo que parece a música de mariachis eletrônicos e terminam com algo que remete ao jazz dos anos 40. No percurso, ouvimos ska, funk, punk, metal, industrial, bolero, bossa nova, samba, grunge, disco, mambo, tudo mais ou menos entremeado por ritmos regionais mexicanos e referências pré-hispânicas…

 

A Rolling Stone fez em 2012 uma lista dos 10 melhores álbuns de rock latino-americano. Re ocupa o primeiro lugar, algo que volta a ocorrer em 2023 em outra lista da mesma revista, dessa vez com 50 posições.

 

Listas são sempre relativas e contestáveis. Mas elas deveriam servir para nos provocar a sair de nossas caixas e suscitar um interesse por bandas que cantam em um idioma de que o nosso é muito próximo.

 

A disparidade de tratamento que dedicamos aos artistas estadunidenses e britânicos apareceu no Lollapalooza de 2014 em São Paulo, quando a Café Tacvba se apresentou para um público “quase mexicano”. Pior mesmo só a pista vazia do show da banda em uma das edições do Lollapalooza de 1992 “na gringa”.

 

O relato sobre o ocorrido em 1992 é parte do documentário Quebra Tudo (2020), no qual a Café Tacvba é um dos destaques, arrancando elogios de um David Byrne. Outra oportunidade para conhecermos mais exemplos de bandas mexicanas nos é dada pelas trilhas sonoras de filmes excelentes como Amores Perros (2000) e E Tua Mãe Também (2001).

 

Sim, tudo isso é um convite para darmos a devida atenção ao rock em espanhol!

 

 

México, cabrones!

A Café Tacvba forma-se no contexto da retomada do rock que ocorre nos anos 1980 no México. Retomada no sentido forte: o gênero chegou a ser banido das praças públicas nos anos 70 por sua associação com “distúrbios” e “subversão”. Embora não tenha havido uma ditadura, um mesmo partido dominava a política nacional.

 

Esse domínio só vai ser interrompido em 2000, mas nas duas décadas anteriores o cenário para o rock já passa por muitas mudanças. Gravadoras multinacionais demonstraram interesse por bandas que cantavam em espanhol, elas mesmas beneficiadas por um circuito renovado para apresentações e difusão.

 

A Café Tacvba é formada em 1989 por quatro jovens: Rubén Albarrán, Emmanuel “Meme” del Real e os irmãos Joselo e Enrique “Quique” Rangel. Eles viviam em Ciudad Satélite, um subúrbio da capital federal onde predominava o apreço pelo “americano” (leia-se: Estados Unidos). Nas palavras de Joselo: “Viver em Ciudad Satélite significou que redescobrimos grande parte da nossa cultura mexicana aos 18 anos.”

 

A cena rock da Cidade do México era variada. Inspirações vinham dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e da Espanha, ao mesmo tempo em que alguns artistas buscavam misturar essas referências com coisas locais. A Café Tacvba estava nessa vertente, seguindo caminhos abertos por Maldita Vecindad e Caifanes, entre outras.

 

No livro de Enrique Blanc, que reúne entrevistas com os quatro integrantes da banda, há um relato de Albarrán onde aparecem os elementos que vão definir o conceito da Café Tacvba: a frustração de não ter os meios técnicos para emular as bandas gringas, a descoberta da discoteca dos pais com expoentes da música popular mexicana, o fascínio por compilações de “pura música indígena”, a combinação de instrumentos acústicos (como a jarana e o tololoche) com a escaleta e uma bateria eletrônica.

 

O resultado desse laboratório, testado no circuito de palcos da Cidade do México, aparece no álbum de estreia da Café Tacvba, lançado em 1992. Por conta do destaque alcançado pelos teclados, há um pé nos anos 80. A assimilação de referências locais reflete-se nas letras e cria uma sonoridade singular que não deixa de ser pop.

 

Na divulgação do primeiro álbum, a banda não apenas frequenta muitos programas de TV como circula por todo o país. Essas viagens vão ampliando e aprofundando as referências regionais, impulsionando o quarteto numa direção ainda mais marcada, que vai se manifestar em Re: “abordar gêneros completamente distintos e quase esquizofrênicos”.

 

As palavras são de Gustavo Santaolalla, um argentino que, como músico nos anos 70, é parte das buscas de fusão do rock com ritmos latinos e que vai continuar sua trajetória de produtor nos Estados Unidos. Dali ele acompanhou a cena mexicana e assistiu diversas bandas, incluindo a Café Tacvba, que foi contratada pela Warner.

 

Santaolalla mostrou-se entusiasmado com uma primeira fita demo e incentivou o quarteto a compor mais músicas. Por isso um número tão alto de faixas a rechear o segundo álbum. A gravação delas começou em Cuernavaca, cidade próxima da capital, e continuou em um par de estúdios na região de Los Angeles, onde a Café Tacvba passou dois meses. Re foi lançado em julho de 1994.

 

A banda insistiu em não ter um baterista. Mas a gravação dos sons da bateria eletrônica, microfonando cada um dos tambores, buscou emular o trabalho de um instrumentista. Houve várias participações que acrescentaram percussão, outras cordas e sopros a algumas das músicas. Tudo sob a batuta de Santaolalla, assistido por Aníbal Kerpel, que mixara o álbum de 1992.

 

Descrever as faixas de Re como uma sucessão de gêneros não faria justiça ao seu conteúdo. Pois em várias músicas há uma combinação de referências. Um exemplo é a faixa de abertura, “El Aparato”, uma síntese impactante de elementos acústicos e eletrônicos, com sua sonoridade ao mesmo tempo enraizada e cosmopolita.

 

Na sequência, escutamos “La Ingrata”, espécie de polka-ska, realmente uma fusão entre ritmos norteños mexicanos e uma energia punk. Em “El Ciclón”, o funk eletrônico domina, mas entremeado por um quase rap e com um riff de nu metal.

 

“El Borrego” é inspirada no industrial do Ministry, que a banda assistiu no Lollapalooza 1992, assim como o grunge imprime sua marca em “La Pinta”. O interessante é que nos dois casos a sonoridade beira a paródia, empacotando letras endereçadas a quem defenderia uma assimilação mais direta desses estilos.

 

“Esa Noche” e “Madrugal” são os boleros do álbum, em interpretações que ficam próximas do que os tacubas escutavam nas discotecas de suas casas. Já “El Puñal y el Corazón” é uma fusão de mambo com bossa-nova, cantada de maneira mexicanamente dramática.

 

A bossa-nova aparece ainda em “Trópico de Câncer”, também bastante alterada por elementos eletrônicos. Outra referência brasileira, essa mais reconhecível, está no samba “La Negrita”, embora isso dependa de que trecho estamos ouvindo.

 

“Ixtepec” tem elementos que remetem às soluções do primeiro álbum, ao passo que “24 Horas” lembra XTC. “El Metro” é feita para as pistas, com sua levada jazz. Em “El Baile y el Salón”, o que dá o tom é a disco dance, que também comparece em “El Tlatoani del Barrio”.

 

“El Tlatoani del Barrio” exacerba as misturas: inicia com um coro em língua pré-hispânica e prossegue com uma batida quebrada e teclado jazz. Depois tudo se fusiona e descamba em disco music.

 

O ska volta a aparecer em “Las Flores” e “El Fin da la Infancia”. No caso desta, tem ligação direta com algo que a banda conheceu pessoalmente em uma de suas viagens ao oeste do México. Viram “música de caballito” num andamento aceleradíssimo. Por conta dessa inspiração, os metais não poderiam faltar.

 

“Pez” e “Verde” formam uma unidade, com ingredientes eletrônicos fortes, mas em tons delicados, algo psicodélicos. O álbum de quase uma hora termina com a breve “El Balcón”, mixada com um volume mais baixo. Um aceno à música popular mexicana, mas com sons que remetem ao jazz e ao swing dos anos 40.

 

Há muitos temas nas letras de Re, permeadas de uma dimensão política. Sutilmente em “El Balcón”, um conto de amor entre “un indio y una negra”. De forma escancarada em “Trópico de Câncer”, em que o engenheiro Salvador, “salvador da humanidade”, é confrontado por críticas ao progresso. A questão ambiental atravessa outras músicas, como “Pez” e “Verde”.

 

O realismo fantástico se destaca em “Ixtepec” e “El Aparato”, ambas inspiradas em peças literárias mexicanas, algo recorrente no primeiro e segundo álbuns da banda. Amor e questões sociais são abordados por meio de histórias.

 

Mesmo os temas românticos estão atravessados por sentimentos cósmicos (“Las Flores”, “El Baile y el Salón”) ou então pelos contratempos da vida urbana (“24 Horas” e “El Metro”). Em “Madrugal”, a cidade vira personagem: “A catedral desaparece entre o ar poluído e cocô de pomba”.

 

São imagens urbanas que vemos no videoclipe de “La Ingrata”, num primor de edição. A banda resumiu o vídeo da música que se tornou o principal sucesso de Re como o encontro entre o norteño e o hip hop. Mas sua letra fala de outra coisa.

 

“La Ingrata”, “El Puñal y el Corazón” e “Esa Noche” têm em comum cantarem o lamento e a desforra em relacionamentos, em tons prá lá de dramáticos. No caso de “La Ingrata”, em 2017 a banda decidiu não mais incluí-la em seus shows. Embora sua letra seja uma paródia (acentuada pela forma como é cantada), conta uma história de violência contra uma mulher. Mais recentemente, voltou a executá-la, mudando o gênero da personagem, que virou masculino!

 

“El Borrego” confronta quem junta ideologias opostas (“Soy agresivo, y muy alternativo”), enquanto que “La Pinta” manda recados para ex-apoiadores da banda (“Si quieres en casa puedes quedarte a teorizar”).

 

“La Negrita” questiona se o melhor lugar não é onde alguém cresceu. “El Tlatoani del Barrio” usa uma palavra nahuatl para designar o chefe local, cenário para Rubén cantar a história de como seus pais se conheceram.

 

Como percebemos, a dimensão política pode aparecer por muitos lados. Em “El Fin de la Infancia” ela se funde à própria concepção da Café Tacvba, ou seja, se trata de questionar a dependência cultural e de buscar caminhos no passado local para o futuro global: “Mas eu já sou grande para decidir minha vida / 500 anos frustrados, acho que já foi uma ótima medida”.

 

Um dos trechos de “El Ciclón” é: “Quero fazer um quadrado, transformá-la em um triângulo / mas a vida sempre retorna à sua forma circular”. No videoclipe dessa faixa, muitas coisas giram. A ideia da vida como um ciclone articula-se com as temáticas ambientalistas.

 

A mesma ideia está na capa do álbum. Destaca-se um caracol sobre grafismos que também desenham círculos, mas em combinação com formas quadriculares. De acordo com Albarrán, o círculo envolve uma dualidade paradoxal (vejam a ilustração da contracapa do álbum), algo que se depreende das culturas pré-hispânicas: Atl-Tlachinoli, ou a água que queima.

 

E ainda: “escolhemos Re porque é a segunda nota musical e foi o nosso segundo álbum. Mas também se refere à reiteração, à revolução, a conceitos que de alguma forma tinham algo a ver com o que fazíamos musicalmente”.

 

Algo importante na Café Tacvba é a força do coletivo. Os quatro músicos contribuem em composições próprias ou compartilhadas. Joselo, Quique e Meme se revezam entre instrumentos acústicos e elétricos, embora o último, um ex-estudante de engenharia eletrônica, seja o mais versátil junto às teclas de vários aparatos, além de colaborar como vocalista.

 

Em uma configuração tão equilibrada, Rubén, porém, se destaca por sua extensão vocal e seu jeito de cantar. Irrequieto no palco, cada elemento de sua aparência tinha um propósito. Aparência, aliás, mutante, refletida na adoção de pseudônimos ao longo de seu trajeto artístico. Na época da divulgação de Re, Ruben era Cosme, nome, como suas roupas, nada a ver com os estereótipos do rock.

 

 

Dilemas do rock enraizado

Coisa curiosa: quando Re foi lançado, o público mexicano não lhe deu muita atenção. A situação já mudaria dois anos depois, quando a banda gravou um MTV acústico. Aliás, a MTV Latina foi um canal essencial para a divulgação da música do Café Tacvba e outros artistas do rock cantado em espanhol.

 

De todo modo, a ideia de um rock com “raízes mexicanas” vai sempre levantar alguns dilemas. De que México se trata? O dos cantores consagrados em algum panteão nacional? Os ritmos e gêneros regionais? O das culturas pré-hispânicas? E quanto mais autenticidade se busca, mais se corre o risco de uma acusação de “apropriação cultural”.

 

São mesmo dilemas complicados. Várias vezes, a Café Tacvba rejeitou o rótulo do rock. Mas sua busca por incorporar outras referências só faz sentido a partir do mundo em que se formaram seus integrantes, esse mundo do apreço pelo estrangeiro e por bandas como The Cure, The Smiths e outras que curtiram na sua adolescência de classe média urbana.

 

Em favor da Café Tacvba, pode-se concordar que sua busca foi obstinada e compromissada, resultando em parcerias musicais e no apoio a causas sociais significativas. Ao menos do ponto de vista do rock, o resultado foi renovador, desafiando o gênero a lidar com dualidades paradoxais e, ainda assim, capazes de “soar bem aos ouvidos”.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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