Por que as mulheres não podem envelhecer?

 

 

“O que terá acontecido a Baby Jane?”  habita nosso imaginário cultural especialmente por causa do filme de 1962, dirigido por Robert Aldrich e protagonizado pelas icônicas Betty Davis e Joan Crawford. Você já deve ter visto alguma foto de Betty vestida como Jane ou ouvido alguma piada envolvendo a tensão que permeia toda a trama.

 

Em 2019 a Darkside trouxe para o Brasil o livro que inspirou o filme, escrito em 1960 pelo autor americano Henry Farrell, em uma edição luxuosa que traduz já na sua capa a tensão brilhantemente adaptada para os cinemas.

 

Jane Hudson foi uma atriz mirim de muito sucesso que viu sua fama desaparecer na vida adulta. Sua irmã mais jovem, Blanche, foi alçada ao posto de estrela da era de ouro de Hollywood, firmando uma cláusula no contrato de seus filmes que exigia a atuação de Jane neles.

 

 

O que pode parecer a atitude de uma irmã preocupada é apenas um dos nós que unem as duas mulheres ao ponto do sufocamento.

 

No auge da fama Blanche sofre um acidente automobilístico grave, perde os movimentos das pernas e passa a viver em sua mansão aos cuidados de uma Jane ressentida e inconformada com o sucesso da irmã. O primeiro capítulo começa com elas assistindo à exibição de um filme antigo de Blanche na TV, o que percebemos como um gatilho para toda a tortura psicológica a que Jane a submete, testando os limites do seu medo e desconfiança.

 

O livro é considerado um percursor do terror gótico e nos seus silêncios angustiantes ele guarda também a feiura que habita no cotidiano, nos adultos que nos tornamos quando a infância nos tortura.

 

Há poucas passagens sobre os anos de criança das irmãs, explicativas o suficiente sobre a negligência dos pais. Enquanto Jane era vista como o arrimo de família e mimada além da conta, Blanche vivia o desprezo por não ser bonita e talentosa o suficiente para se tornar uma fonte de renda. Henry Farrell não precisou de reality shows para nos anos 60 lançar uma crítica ainda que não escancarada sobre os danos que a fama precoce pode fazer ao psicológico de uma criança.

 

E nessa espiral de sentimentos Jane e Blanche desconhecem os próprios corpos. Henry não tem pena da dificuldade que as mulheres enfrentam para continuarem sendo as mesmas em um mundo que não permite que elas envelheçam. Jane se veste com roupas que não comportam o seu corpo, as rugas do rosto são agigantadas em seus delírios infantilizados. Blanche, por sua vez definha aos olhos da irmã, tentando nos seus momentos de pavor lidar com o corpo enfraquecido, as pernas desobedientes, os músculos flácidos.

 

Nos trechos finais Henry apaga de Blanche sua beleza, a passagem para o estrelato, e nos deixa dúvidas enquanto a sua intenção, se um alerta sobre a crueldade da indústria cinematográfica e da sociedade com o passar dos anos para as mulheres ou se ele mesmo compactuava desse sexismo, nos vendo como inseguras e sempre prontas para a tal rivalidade feminina, clima fortalecido  pela relação difícil entre Bette e Joan no set do filme, elas mesmas quebrando padrões  ao atuar em uma  produção hollywoodiana com 54 e 57 anos, respectivamente.

 

Pensando bem, quantos filmes estrelados por mulheres nessa mesma faixa etária você já assistiu?

 

De qualquer maneira, “O que terá acontecido a Baby Jane?” é uma criação tão imensa que ultrapassou as suas formas, criando um gênero do cinema conhecido como Gran Dame Guignol, que produziu filmes estrelados por atrizes consideradas velhas para a indústria, verdadeiras reflexões sobre como o envelhecer é imposto em forma de castigo para as mulheres.

 

E com  a publicação da Darkside é um livro que pode finalmente ser lido e admirado como o que ele realmente é: um tratado verdadeiro e sem firulas sobre como os mortais podemos dirigir seu próprio horror.

 

 

 

 

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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