Não dê ouvidos ao seu tio – o novo He-Man é um triunfo

 

 

Das coisas mais resilientes dos anos 1980, segue viva a admiração de uma legião de quarentões por um herói de sunga peluda e pele bronzeada. He-Man foi um sucesso estrondoso em todo o mundo, e intenso no Brasil, com sua linha de brinquedos e desenho animado influenciados pelo imaginário de fantasia de capa & espada dos anos 70. A garotada que batia ponto em frente a TV cresceu e manteve o culto ao universo do herói e seu nêmesis fanfarrão, Esqueleto.

 

Concebida como uma linha de bonecos de fantasia e ficção científica pela norte-americana Mattel, He-man And The Masters Of The Universe, o nome oficial, ganhou como estratégia de marketing uma animação produzida pelo estúdio Filmation e uma série de quadrinhos. Embora o desenho que encantou a molecada oitentista tenha sido encerrado ainda em 1983, a franquia se manteve viva através de diversos relançamentos, de bonecos, um filme live-action, HQs, e um revival televisivo em 2002, que não disparou a mesma explosão da série original.

 

Contando com esse cenário, por assim dizer, já montado, a Mattel confiou à Netflix e ao cineasta/quadrinhista Kevin Smith o comando da nova incursão de He-Man e sua turma na cultura pop. Masters Of The Universe: Revelation (no Brasil, MOTU: Salvando Etérnia) é uma série animada desenvolvida pelo estúdio Powerhouse, o mesmo do sucesso Castlevania, na própria Netflix, que estreou no início do segundo semestre. Kevin Smith atua como showrunner, produtor e roteirista da animação.

 

Ao contrário das encarnações anteriores, a produção avança a história original, causando uma grande mudança no status geral da franquia. A sinopse é relativamente simples: após um período de calmaria, onde a guerra com Esqueleto parece ter sido finalmente encerrada, o reino místico de Etérnia se vê tragado em um evento cataclísmico,a partir do qual a própria natureza do universo muda. Segredos são revelados, e personagens importantes parecem perdidos para sempre.

 

As viradas de roteiro e o design da série deixam claro que ela é um produto criado para pessoas que cresceram como fãs dos personagens. A conquista de novos seguidores parece ser encarada aqui mais como um bônus do que outra coisa. No entanto, foi justamente o público antigo, e adulto, quem mais reclamou dos rumos – adultos! – da série.

 

Sem querer entregar muito do enredo, a história de Salvando Etérnia altera profundamente a relação entre alguns personagens clássicos como He-Man, Teela e Mentor. Figuras que reinavam nas manhãs na TV passam, de certa forma, para o segundo plano enquanto outras assumem protagonismo inédito. E olha o gatilho para o nerd velhaco: muitas figuras femininas da série ganham um merecidíssimo – e tardio – destaque.

 

Foi o suficiente para que fóruns na internet dedicados aos heróis de Etérnia denunciassem que o novo desenho fazia parte da woke culture (como se diz nos EUA), conhecida aqui por vezes como lacração. Teve gente, jornalistas inclusive, denunciando o subtexto “esquerdista” do desenho. Foram muitos os gritos de desespero pela infância perdida ou estragada pelo maléfico Kevin Smith, que optou por fazer o cenário caminhar, evoluir, em vez de permanecer estagnado por mais de quarenta anos.

 

Uma gritaria que faz parte de um fenômeno que merece ainda muito estudo para ser completamente destrinchado – o dos fãs que se encantam por algum produto baseado em criatividade e invenção e se sentem traídos quando o objeto do seu afeto busca ser, justamente, mais criativo e diverso.

 

Não por coincidência, geralmente os queixosos são adultos de meia idade, quase todos homens, que viveram a infância nos anos 1980/90. Os estragos do conservadorismo de costumes das eras Reagan e Thatcher são mais profundos do que imaginávamos, afinal.

 

Mas ignore tudo isso, a histeria dos que não lidam bem com a mudança, e dê uma chance a uma reimaginação vibrante da franquia. É fato que a produção aquece melhor o coração de quem se importa com os personagens, ou quem, por algum saudosismo, resolve dar uma chance aos velhos heróis da infância em uma noite de TV sem outras opções.

 

Mas Salvando Etérnia tem seus méritos próprios, e pode apelar a um novo público. Personagens com designs modernizados e bem pensados, profundidade de emoções, uma certa melancolia nos roteiros. E uma sensação de perigo como não havia nas antigas aventuras de He-Man, com suas histórias resolvidas em vinte minutos. Em 2021, os cinco episódios disponibilizados da nova série trazem mais consequências e desafios aos personagens do que todas as temporadas clássicas produzidas até aqui.

 

Smith e a Netflix prometeram para breve nova leva de episódios, que servirão para encerrar esse primeiro ciclo de histórias. E que talvez corra o risco de ser a única temporada produzida, dada a recepção reticente de boa parte do público.

 

Além da boa história, existe um excelente motivo para dar uma chance à série. Os produtores reuniram um grande elenco de vozes originais, que foi muito bem dirigido, criando um resultado acima da média.

 

Entre os destaques estão Liam Cunningham e Lena Headey (ambos de Games Of Thrones) como Mentor e Maligna. Lena, lendária intérprete de Cersei Lannister, está imbatível, criando a versão definitiva da personagem. O músico Henry Rollins faz a voz do vilão Triclops. Mark Hammil (Star Wars) dubla o Esqueleto e Tony Tood (Candyman) interpreta Scareglow. Sarah Michelle Gellar (Buffy) faz a Teela e Chris Wood interpreta o Príncipe Adam/He-Man. A interação do elenco é uma delícia.

 

Um fato curioso: a Netflix estreou recentemente outra produção com He-Man e seus amigos. Dessa vez, uma animação produzida em computação gráfica, com reimaginações ainda mais radicais dos personagens e voltada para o público infantil. Infantil mesmo, estamos falando aqui de crianças pequenas, até cinco, no máximo oito anos.

 

Embora tomando maiores liberdades em relação à história e visual dos heróis, essa versão kids parece ter agradado a boa parte dos fãs mais velhos descontentes com o tratamento dado por Kevin Smith. Uma prova de que muitos fãs preferem ter o passado encapsulado e repetido ao infinito no lugar de verem suas histórias preferidas respirarem e crescerem. Vai entender.

Fabio Luiz Oliveira

Fabio Luiz Oliveira é historiador e crítico da Arte não praticante. Professor da rede pública do Rio de Janeiro. Escritor sem sucesso, espanta o mofo de seus textos em secandoafonte.wordpress.com

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