Meia-Noite E Vinte – Daniel Galera

 

O livro de Daniel Galera ainda ressoa o apocalipse

 

Gravitei por muito tempo em torno do trabalho do escritor paulista (e porto-alegrense de formação) Daniel Galera. Em diversos momentos algum livro seu estava na minha pilha pessoal dos “para ler”. Como acontece com todo mundo, obras foram entrando na frente, até que eu mesmo mergulhei em um período de exílio da literatura – passei alguns anos lendo somente ficção científica e fantasia de qualidade duvidosa.

 

Mas perto de onde moro trabalha um chaveiro, o grande Edenílson, que criou uma biblioteca comunitária na sua barraca. Os clientes e moradores do bairro deixam por lá os livros que já leram e não pretendem guardar e pegam outros. Foi assim que cheguei a Meia-Noite E Vinte, o último romance publicado por Galera, editado pela Companhia Das Letras em 2016.

 

O livro cuida da história de um grupo de amigos de Porto Alegre que se reúnem no velório de um deles, escritor de sucesso e cultuado, que é assassinado em um crime banal, um assalto cotidiano. Anos antes, ainda quase todos adolescentes, fizeram parte de um fanzine digital, o Orangotango, que alcançou fama e certo sucesso nos primórdios da internet, nos anos 1990. No reencontro, esses amigos, agora na casa dos trinta anos, a meia-idade na porta, disparam em reflexões e angústias em seus universos internos. O livro não possui capítulos definidos e se estende pelas experiências e lembranças de seus personagens, sempre em primeira pessoa.

 

De certa maneira, o livro recolhe trechos da trajetória do próprio Daniel Galera, que fez parte do Cardosonline, célebre publicação eletrônica, em mala direta, que foi berço dele e de outros escritores e jornalistas daquela geração, como a gaúcha Clara Averbuck. Havia um sentimento de desbravamento, de possibilidades tentadas em um meio que ainda engatinhava, e mantinha então seus mistérios. Apesar disso, o autor nega que seja uma obra autobiográfica.

 

Ler Meia-Noite E Vinte com atraso em relação ao seu lançamento trouxe uma melancolia difícil de ignorar. Um dos principais temas do romance, que desenha uma elipse sobre os acontecimentos do final da década de 1990 e os acontecimentos políticos no Brasil a partir de 2013, é uma forma particular de ansiedade diante da vida, dos fins possíveis, constantes e serializados, que a modernidade passou a produzir com velocidade crescente.

 

Em 1999, os jovens personagens – e o mundo inteiro – aguardavam o “bug do milênio”, a pane apocalíptica que ocorreria em todos os computadores do planeta, incapazes de registrar em seus sistemas a passagem para o ano 2000. Redes iriam colapsar, a infra estrutura mecânica e digital cairia, deixando a Terra em uma noite prolongada e caótica. Mas estamos aqui, nada aconteceu então.

 

A pane geral que iniciou em 2013, embora seja particular ao Brasil, tem causado mais estragos. As manifestações daquele ano, que começaram com protestos contra o aumentos das passagens dos transportes públicos, rapidamente se transformaram numa onda “contra tudo que está aí”. Foi o início dos golpes mais contundentes contra o governo de Dilma Roussef, do PT. E nos levou ao impeachment ilegítimo de 2016. E nos trouxe, em 2019, ao abismo da extrema-direita.

 

Vivemos tempos carregados, uma névoa cinzenta e ácida de incertezas parece sobrevoar nossos dias. Quem acompanha os acontecimentos políticos, e seus desdobramentos práticos na sociedade, não consegue escapar ao aperto no peito por não saber em que parede nosso trem desgovernado vai bater. Esse quase sufocamento atinge os personagens adultos de Galera de formas diferentes, quase todas tangenciando o quadro maior que se instalou no país. Na época do lançamento do livro, o autor apontou como essas convulsões sociais, uma greve de ônibus e uma onda de calor que atingiram Porto Alegre em 2014, ano em que se passa a história, contribuíram para essa atmosfera congestionada. Meia-Noite E Vinte é um livro respirando entre escombros.

 

A tristeza que ele traz, três anos após sua publicação, e ainda que possua um final algo esperançoso e delicado, deve muito ao fato de que o apocalipse de 2013 segue em curso. Não tivemos uma data limite, um reveillon de 1999 para respirarmos aliviados porque nada de grave aconteceu. O Brasil continua a desenhar uma espiral cada vez mais estrangulada, em direção a um centro que ainda não se pode distinguir.

 

Li Meia-Noite E Vinte em transportes públicos, sem ignorar a ironia, na volta para casa, à noite. E via pela janela as pessoas e os carros seguindo adiante, todos com destino, mas não consegui afastar a sensação de que são destinos passageiros. No fundo e ao cabo, ninguém no país sabe bem para onde estamos indo.

 

O livro de Daniel Galera pede esse contato e convida a essa experiência, independente da sua recepção pela crítica ou público na época do lançamento – não quero aqui entrar em questões mais polêmicas sobre a obra, algumas podem ser encontradas em pesquisas pela internet, e vale a pena serem debatidas. Ainda que possa, para alguém, faltar em certos aspectos, Meia-Noite E Vinte funciona como uma reflexão, dispara um diálogo interno no meio da confusão em que estamos metidos. Nós e o livro respiramos, e pulsamos, em expectativa.

Fabio Luiz Oliveira

Fabio Luiz Oliveira é historiador e crítico da Arte não praticante. Professor da rede pública do Rio de Janeiro. Escritor sem sucesso, espanta o mofo de seus textos em secandoafonte.wordpress.com

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