Jerry Cantrell recoloca o grunge em seu lugar
Jerry Cantrell – I Want Blood
46′, 9 faixas
(Independente)
Dia desses vi um anúncio de um tributo sinfônico ao … Nirvana. Depois de ter meu estômago de volta à órbita correta, confirmei mais uma vez como o “grunge” se tornou uma sonoridade absolutamente desterritorializada em relação a seu significado e sentido originais. Tudo bem, faz parte do jogo da cultura pop, o mesmo jogo que fez o próprio Kurt Cobain estourar seus miolos e conferiu tons e tonalidades variadas de melancolia e distúrbios emocionais em vários jovens artistas ao longo do tempo. Claro, vários da própria leva de cantores e compositores da Seattle do fim dos anos 1980, início dos anos 1990. Jerry Cantrell, guitarrista, compositor e arquiteto da sonoridade de uma das grandes bandas daquele tempo e lugar, o Alice In Chain, é um dos sobreviventes a estes mecanismos e ao próprio tempo. Depois de passar mais de vinte anos sem lançar um disco solo e dedicado ao retorno do AIC em sua versão repaginada a partir dos anos 2000, Cantrell mostrou força e surpresa em “Brighten”, disco solo lançado em 2021. Agora, três anos depois, ele volta com um novo trabalho, bem diferente, este sombrio “I Want Blood”. A boa notícia é que, assim como o anterior, este álbum é o que o “grunge” pode produzir de melhor hoje, no nosso tempo. Vejamos.
Não é exagero dizer que Cantrell inventou uma forma específica de som pesado. Muito baseado em vocais distorcidos e psicodélicos, devidamente embasado em timbres de guitarra que oscilam entre o metal e essa mesma psicodelia setentista, ele nem precisava provar absolutamente nada só por conta da primeira trinca de álbuns do Alice In Chains original, especialmente “Dirt”, de 1992. Mas Jerry tem o que dizer e segue na ativa, criativo e capaz de oferecer novidades. Se “Brighten” era um trabalho surpreendentemente diverso em termos de timbres e possibilidades, em “I Want Blood”, ele retorna gloriosamente aos rincões mais escuros do espectro sonoro e se sai com seu melhor trabalho solo e, de quebra, consegue igualar os melhores momentos do Alice In Chains em todas as suas versões e épocas. Convenhamos, não é pouco.
As canções de “I Want Blood” não têm pressa de terminar e oferecem tempo suficiente para todos os solos de guitarra elegantíssimos que Cantrell distribui com naturalidade ímpar, além de possibilitar vários momentos em que os vocais surgem gloriosos e na melhor tradição do melhor do grunge enquanto estilo de rock pesado e alternativo. Mostra que Cantrell pode ter até forjado este jeito inconfundível de canto – grave e distorcido, quase pertencente a uma dimensão paralela – uma vez que ele dividia os arranjos e arquiteturas com o falecido – e ótimo – vocalista Layne Staley nos primeiros anos do Alice.
São tantos momentos ótimos em “I Want Blood” que nem sabemos por onde começar. Com participações de gente como Duff McKagan (Guns’n’Roses), Robert Trujillo (Metallica), Mike Bordin (Faith No More), entre vários outros colaboradores, mas a presença de Jerry é absolutamente dominante. O percurso sonoro começa explosivamente com ‘Villified’, claustrofóbica e densa na melhor tradição grunge, que ataca o ganho de espaço da IA. Após trinta anos no topo do seu jogo, a voz de Cantrell continua forte, dona de uma autoridade sinistra para discorrer gravemente sobre temas opressores da atualidade. Da mesma forma, ‘Let It Lie’, com arranjo influenciado pelo Black Sabbath, é o “call to action” que expõe violência social e superficialidade das relações pessoais, não poupando nem o aplicativo Tinder. Em ‘Echoes Of Laughter’ há um aceno a uma variação bem pesada de country, enquanto canções como ‘Hold Your Tongue’ e a relevadora ‘It Comes’ pavimentam o caminho.
‘I Want Blood’ é o disco que vem lembrar às pessoas do que esta sonoridade surgida em Seattle era feita. Angústia e tensão por perceber que o mundo caminha alegremente para um abismo profundo e não um circo para diluições sem noção. Jerry é o cara. Tem sido há mais de trinta anos e segue firme.
Ouça primeiro: ‘Villified’, ‘Let It Lie’, ‘Echoes Of Laughter’, ‘It Comes’
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.