Françoise Hardy e Suas Meninas

 

 

Escrevi esse texto em 17 de outubro de 2013 para o Monkeybuzz. Na época, Françoise Hardy estava a poucos meses de completar setenta anos de idade. Sua morte no dia de ontem leva um ícone da música e da cultura pop universal. Fica a relembrança e a reverência por ela.

 

 

 

Em 2014, Françoise Hardy comemorará seu 70º aniversário. Se podemos afirmar que Elvis Presley foi o rosto da América no fim dos anos 50, que Beatles e Stones foram as fuças da Inglaterra a partir de 1963/64, não é exagero dizer que a França, essa moça sempre tão bonita e elegante, tinha os mesmos traços leves e belos de Françoise na década de 1960. Sua música tem papel decisivo na criação de uma vertente Pop Rock na França, o Yé Yé. Sua influência musical e visual vem até hoje e ela fez parte de momentos muito interessantes do Rock. Vambora ver?

 

Quando Bob Dylan foi tocar em Paris por volta de 1966, pediu para encontrar com Françoise. Dois anos antes, quando lançou Another Side Of Bob Dylan, o bardo americano havia estampado na capa do disco um poema, intitulado Some Other Kinds Of Songs, no qual Hardy é mencionada textualmente. Em meio a essa incomum tietagem por parte de Dylan, Mick Jagger também dissera que ela era “a mulher ideal”, num ato de azaração explícita via imprensa. O fato é que Hardy era uma espécie de ícone, num raro caso de importância justamente dividida entre seu talento como cantora e compositora e sua beleza absolutamente estonteante. Bem diferente de quando frequentava colégio interno na década anterior. Nascida em 1944, filha de pais separados, Françoise sempre foi tímida. Era muito alta e magra, o que dificultava as coisas naqueles tempos.

 

Sem muitos amigos e bastante estudiosa, as tardes da moça eram passadas em seu quarto, debruçada sobre os livros e ouvindo as transmissões da Radio Luxembourg, em busca dos novíssimos cantores, cantoras e grupos de Rock vindos dos distantes Estados Unidos. Não só Elvis, Little Richard ou Chuck Berry, mas coisas mais sutis como Everly Brothers, faziam a cabeça da menina. Quando terminou o ensino médio, Hardy ganhou um violão de seu pai e deu asas à imaginação, começando a compor. Ela já frequentava o Petit Conservatoire de Mireille, uma das mais conceituadas escolas de canto francesas e decidira entrar na Sorbonne para estudar ciências políticas. Demorou um ano para perceber que sua vida nunca estaria completa e feliz sem a música e largou tudo para ser cantora. Pouco depois, em 1961, aos dezessete anos, Françoise assinava seu primeiro contrato como cantora/compositora, com a gravadora Vogue. Logo estava nas paradas de sucesso locais com “Oh oh Chéri”, lançada em 1962.

 

O maior problema de Françoise Hardy era a timidez. A menina não tinha desenvoltura, compunha canções tristes ao violão e sua voz baixa não ajudavam muito mas, ao mesmo tempo, alguma aura de tristeza, contemplação e charme vinham dele combo. As revistas de moda, então em busca de alguém que suplantasse o terreno dos antigos ensaios e ainda transitasse pelos caminhos da música, logo voltaram suas baterias para Hardy. Ao mesmo tempo, a França começa a experimentar os efeitos do Rock’n’Roll, que varrera a Inglaterra, arranhara a Alemanha e chegara todo pimpão às portas de Paris. Teve lugar então o Yé-Yé, algo como “yeah yeah yeah” em francês, com o surgimento de vários artistas com inspiração rock’n’roller. A partir de 1963, já é possível detectar o estabelecimento do Yé-Yé nas paradas, no comportamento dos jovens e no dos artistas, principalmente nas cantoras. Ao contrário das contemporâneas de Yé-Yé (France Gall, Sylvie Vartan), as canções de Françoise eram tristes, ainda que conservassem a ingenuidade total – uma das marcas principais dos artistas. Era como se toda a França (mais Espanha, Alemanha e, pasme, Japão) tivessem idade mental de 16/17 anos, saltitassem nos programas de TV e cantassem sobre pirulitos, bonecas abandonadas depois da adolescência e outros temas. No caso de Françoise, além da figura tímida e bela, as letras eram sobre o quanto ela permanecia triste e solitária em meio à alegria geral instalada.

 

A bordo da onda de cantoras, Hardy viu sua carreira decolar completamente a partir de 1963, quando se apresentou no famoso L’Olympia, em Paris. Sua estreia em LP veio logo a seguir, com um disco homônimo que galgou as paradas de sucesso e vendeu o suficiente para justificar o Prix de l’Académie Charles-Cros e o Trophée de la Télévision Française, concedidos no fim do ano. O álbum, que seria lançado em 1965 nos Estados Unidos e Inglaterra como The Yeh Yeh Girl From Paris, trazia desde seu primeiro compacto, Oh, oh, Chéri, até hits como Tout Les Garçons et Les Filles e Le Temps D’Amour.

 

O estilo de Françoise Hardy e suas aparições em capas de revista e, posteriormente, em filmes e TV, não mudou. Seguiu sendo a tímida e quieta garota parisiense ao longo dos anos 60. A partir de 1968, o mundo tornou-se um lugar totalmente diferente do que era três, quatro anos antes e não havia mais lugar para o Yé-Yé, que ficou decadente, sumindo aos poucos, em meio à ascensão de uma música Pop cada vez mais próxima do rock e das letras de protesto/viagem de drogas. Hardy havia descoberto há tempos que precisaria cantar em outros idiomas além do francês e cuidou para regravar canções em italiano, espanhol, inglês e alemão. Sua influência chegou até ao Brasil, quando os Mutantes regravaram sua versão de Le premier bonheur du jour (1963) em seu primeiro disco, de 1968. Mesmo assim, Hardy não fez sucesso comercial significativo fora da França, mas conseguiu imprimir uma marca visual fortíssima na cultura Pop, algo que chegou a encobrir seu estilo de cantar e seu talento como compositora. Ainda em 1968, Hardy grava Comment te dire adieu?, de Serge Gainsburg, dando continuidade a uma carreira cada vez mais distante do padrão do Yé-Yé, direcionamento iniciado no disco anterior, Ma Jeunesse Fout le Camp, de 1967.

 

A década de 1970 começou um pouco antes para Hardy, tendo que lidar com problemas judiciais com o selo Vogue. Ela criara um selo próprio, a Aspargus Productions e enfrentara a resistência dos executivos, tendo a situação agravada ainda mais quando Hardy assinou acordo com o selo Sonopresse e decidiu não mais apresentar-se ao vivo. A partir daí, ela gravaria muito mais em inglês e italiano que em francês, com resultados maravilhosos, porém pouco conhecidos da maioria. Além disso, mesmo gravando discos marcantes como Questions (1971), Hardy estava cada vez mais envolvida com uma paixão antiga: a astrologia. Suas gravações seriam constantes, mas cada vez mais esparsas, além dela quase deixar a música de lado quando deu a luz a Thomas, seu filho com o guitarrista e compositor Jacques Dutronc, com quem ela se casaria em 1981. Mesmo longe dos holofotes e ainda muito tímida, Hardy seguiu sua carreira de atriz e manteve-se relevante para a cultura pop. Em 1994, o Blur decidiu convidá-la para participar de seu disco Parkfile, na gravação de To The End (e em sua versão em francês, La Comedie), o que poderia ter recolocado a moça na moda, do mesmo jeito que acontecera com Burt Bacharach, devidamente reavaliado a partir de uma foto colocada na capa de Definitely Maybe, primeiro disco do Oasis. Hardy manteve-se discreta, gravando discos que só foram lançados no mercado francês, mesmo em momentos mais especiais, quando contribuiu para uma coletânea de regravações, registrando uma canção chamada Jeanne, acompanhada pelos compatriotas do Air.

 

É difícil detectar a influência de Françoise Hardy em cantoras que não sejam francesas. Por lá poderíamos apontar Coralie Clemént como uma discípula aplicada. A ex-primeira dama, Carla Bruni, quando pisa no palco como cantora, também procura revisitar a estética de voz + violão + vulnerabilidade, levada adiante por Hardy. Laetitia Sadier, vocalista do Stereolab, também guarda algo do soft spot de Françoise, enquanto a cantora israelense, radicada na França, Keren Ann Zeidel, também é influenciada pela música de Hardy, bem como Emilie Simon. Fora da França, é possível perceber alguma influência de Hardy em momentos mais contemplativos (e raros) de Zooey Deschanel e na atitude tímida de Cat Power. O grande legado da jovem alta, magra e bela foi, justamente, impor-se em meio a um mundo machista, que via a mulher apenas como um objeto de fantasias musicais, forjando um estilo próprio, no qual misturava suas reminscências da adolescência, tradicionalismo da canção francesa e os novíssimos parâmetros do Pop Rock nascente. Françoise Hardy se mantém como um dos grandes nomes da canção francesa em todos os tempos.

 

 

 

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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