Entre CD’s e casquinhas
Outro dia comprei CD’s num sebo de livros e discos no Centro de Niterói, cidade onde moro. Lá estavam, em bom estado, edições de “Doggystyle” (o primeiro do Snoop Dogg), “Who Can I Trust?” (estreia do grupo inglês de trip-hop Morcheeba) e “From Africa To America” (do coral Sounds Of Blackness). O preço? Dez reais pelos três. Uma conta rápida aponta o valor unitário de 3,3 reais por álbum, indicando que eles valem tanto quando uma casquinha do McDonald’s – que está custando 3 reais, mas a gente aproxima. O capitalismo é ou não é um trem-fantasma? Os valores imediatos e de fruição flutuam como balões ao sabor de uma brisa de verão ou como se fossem fustigados por um tornado muito nervoso. O fato é que, em 2020, comprar CD’s é um hábito, digamos, muito excêntrico. Ou quase.
Ainda mantendo Niterói como recorte geográfico, a cidade não tem mais lojas de disco. Houve tempo em que era possível fazer um pequeno roteiro, contando com estabelecimentos em Icaraí, Centro e Plaza Shopping, num total que poderia chegar a cinco paradas. Eram bons pontos para se descobrir algumas raridades. A Imagem e Som, perto da Amaral Peixoto, tinha um acervo que variava de edições falsificadas, feitas no fundo de quintal, geralmente coletâneas na base de “o melhor de…” ou “sucessos de …”, chegando a discos importados do grupo americano Cowboy Junkies, especialmente os ótimos lançamentos do fim dos anos 1980. O valor era de 15 reais, perfeitamente possível. A loja do Plaza, cujo nome me foge, era pródiga em ter edições remasterizadas de lançamentos nacionais da Universal, uma vez que eles canibalizavam as caixas de artistas como Ney Matogrosso, por exemplo. Também havia muitos títulos da Warner Archives e outras edições bacaninhas, com valor que chegava a 29,90. Era um pouco mais caro, mas também acessível para malucos colecionadores.
As seções de Saraiva e Americanas continham lançamentos de praxe, serviam, sobretudo, para dar uma passada pelas prateleiras em busca de algo improvável, que tivesse ido parar lá por engano. Lembro do álbum mais recente da cantora americana Janelle Monáe, que chegou nas Americanas por mais de 30 reais – um valor alto para um álbum feito no Brasil – e, numa Black Friday recente, caiu para … quatro reais.
Veja, este texto não é para saudosistas de plantão. Eu adoro e uso streaming diariamente. É uma ótima ferramenta para trabalhar ouvindo música e para conhecer novidades, mas eu ainda tenho o vício/hábito de comprar álbuns que gosto. Sendo assim, se ouço algo interessante no serviço de streaming, fico com vontade de comprar o álbum. Como isso ficou complexo, seja pela ausência de lojas, como pelo preço das moedas estrangeiras, o jeito é caçar o mp3 via blogs ou Soulseek, um aplicativo que uso há uns quinze anos e que me satisfaz plenamente na caça a arquivos deste tipo.
Também não sou um desses cultores do vinil, pelo contrário. Houve tempo em que o CD era uma novidade cara e só havia LPs e fitas-cassete para se ouvir música em casa. Eu tinha meus discos, gostava deles, mas eram grandes, empenavam, arranhavam, a gente tinha de levantar para mudar de lado…Enfim, era chato. Os CDs chegaram com sua pureza sonora, sua resistência maior e um dado que todo mundo esquece: o esforço feito pela indústria musical para se atualizar, publicando em CD vários álbuns fora de catálogo, além de promover relançamentos remasterizados, cheios de faixas extras, gerando edições de luxo, caixas, revisitas, ou seja, toda uma nova visão sobre os lançamentos do passado e atualizando o padrão para o novo tempo. Como fã de música, eu sou um dos que dão valor a estas edições gorduchas e cheias de sobras de estúdio, versões ao vivo e toda sorte de raridade. Há quem ame discos e não ligue, minha mulher, por exemplo.
O capitalismo decidiu que, por enquanto, os CD’s estão fora do baralho do mercado. Mentira. Na verdade essa é uma percepção periférica, especialmente existente em países periféricos como o nosso. No centro da produção musical global – Estados Unidos e Europa – o formato resiste e vende o suficiente, baseado na lógica de que “quem gosta, compra”, algo que não existe aqui. Lá fora há a oferta dessas edições de luxo, feitas e refeitas para quem ama música. O segundo disco do Tears For Fears, “Songs From The Big Chair”, já teve várias versões, entre remasterizações, remasterizações com bônus, relançamentos por conta de aniversários e uma caixa quíntupla, contendo tudo o que foi feito em estúdio pela dupla britânica. Como fã do álbum, tenho três edições dele em casa, incluindo essa caixona aí e a recomendo fortemente para quem é fã.
O fato que desequilibra a nossa balança pessoal é que o neoliberalismo sentencia que o dinheiro serve para “proporcionar experiências”. Sendo assim, uma casquinha do McDonald’s tem sua razão de existir como produto, mas o CD, não. O CD não proporciona nada na lógica objetiva e rasa de hoje. Alguém vai chegar para você e dizer: “ora, pra que comprar CD se você pode ouvir em streaming?”. Esta pessoa, assim como o sistema, vive do raso. Para ela, basta a sensação de ouvir, a experiência de prestar atenção, desconhecendo/desvalorizando a maravilha que é ter o disco em mãos, ler o encarte ou simplesmente olhar para uma estante cheia de títulos, lembrar de como vocês os comprou, do quanto demorou para tê-los e do quanto aquele álbum te lembra de gente, lugares, momentos…
O neoliberalismo, visando sempre extrair o máximo do ser humano – no mau sentido – autoriza você “desapegar” dos disquinhos. Afinal de contas, “eles só ocupam espaço”, certo? Fazendo isso, você abdica da verdadeira experiência musical. A de controlar o seu uso e fruição. E se um dia a Internet se tornar cara demais? E se o mundo não comportar mais o padrão que vivemos hoje? E se?
Ter os discos e um aparelho que os leia é um eficaz backup para este mundo estranho, que só faz confirmar a sua estranheza todos os dias.
Sigamos com os CD’s, é o que eu digo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.
Assim como o isqueiro nunca será um produto melhor que a caixa de fósforos. O CD representou o começo do fim! Fim, arrematado pela chegada do mp3.
Nosso mundo acabou em 1995! E olha que já estávamos avisados pelo presentismo do Hartog.