Elza Soares – Planeta Fome

 

 

Gênero: MPB, eletrônico
Duração: 42 minutos
Faixas: 12
Produção: Rafael Ramos
Gravadora: Deck

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

O Tempo, esta entidade inexplicável…Já dizia Caetano Veloso: “é um senhor tão bonito, com a cara do meu filho…”. “Planeta Fome” é o 34º disco da carreira da Dona Elza Soares mas é o primeiro em que ela grava uma composição de sua autoria, a vinheta “Menino”. Basicamente uma intérprete, Elza vive um momento de reinvenção estética, que, podemos dizer, marca sua carreira no século 21. Talvez fechando uma trilogia, iniciada com “A Mulher No Fim Do Mundo” e “Deus É Mulher”, este novo trabalho segue na mesma seara, que é a denúncia da injustiça social no mundo, via Brasil, enquanto abre espaço para um abraço apertado da música tradicional, que Elza sempre cantou, em ritmos eletrônicos e reinventados da própria tradição a que ela pertence. Ou seja, é uma época de recriação dela como artista, que estamos tendo o privilégio de ver.

 

O disco tem participações de BaianaSystem, Orkestra Rumpilezz, Virginia Rodrigues, BNegão, Pedro Loureiro e Rafael Mike e estes nomes só fazem comprovar essa ida-e-vinda no tempo que é a obra de Elza. Os nomes da música brasileira contemporânea, que enxergam nela um veículo poderoso para a transmissão das mensagens (de socorro?), que são emitidas no país hoje, transitam neste mesmo movimento. Estes artistas e Elza, juntos, compõem uma força criativa irresistível e que vem se consolidando nos últimos tempos, desde que a veterana cantora entendeu que poderia/deveria assumir o protagonismo numa música que é de denúncia, porém jamais panfletária. Elza se cerca de gente talentosa o bastante para oferecer canções, interpretações, arranjos e ideias que constituem um corpo de trabalho admirável.

 

De alguma forma muito sutil, a produção de Rafael Ramos funciona às mil maravilhas por aqui e o resultado é um disco muito mais musical e com boas ideias. Se os anteriores já eram ótimos, porém, mas calcados numa estética crua de música, este aqui tem refinamentos e sacadas que dão um molho extra à coisa toda. De cara a versão para “Comportamento Geral”, de Gonzaguinha, surge renovada e extremamente pertinente ao nosso momento, falando dos oprimidos que votam nos seus opressores e, por isso, merecem viver uma realidade estática, em que nada se move. A interpretação de Elza é fortíssima, seu canto alia a suposta vulnerabilidade do tempo transcorrido com uma força que é consequência disso. O resultado é arrebatador e comovente.

 

Outros destaques: “Blá Blá Blá”, que mistura – e alterna – a levada raivosa do rap de BNegão com trechos de “Me Dê Motivo”, de Tim Maia, metida no meio do contexto com propriedade. O andamento e a dinâmica dão à faixa uma
aura única e moderna. “Brasis”, que é antecedida por Elza declamando a sua “Menino”, é um funk com batida que tangencia o afrobeat, falando dos vários países que existem aqui, em nós. É uma reedição do célebre verso “o Brazil não conhece o Brasil”, de “Querelas do Brasil” (Aldir Blanc e Maurício Tapajós), celebrizada por Elis Regina. Os arranjos de cordas em “Tradição” trazem um clima meio apocalíptico, no sentido Cartola do termo. “Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória” já começa com o pé na porta (memória de um tempo em que lutar por seu direito é um defeito que mata), com Elza vagando pela história do país e enfileirando a sina dos que teimam em resistir ao sistema.

 

“Planeta Fome” é um disco essencial para compreender o país e o nosso tempo. Ele deveria substituir os noticiários televisivos pois é muito mais fiel e apegado à realidade dos fatos. Ouvir este álbum hoje é sinal de uma necessária resistência a um tempo de brutalidade e burrice.

 

Ouça primeiro: “Comportamento Geral”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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