“Definitely Maybe” segue forte e decisivo
Existe um senso comum entre fãs e não-fãs do Oasis que seu álbum de estreia é o melhor momento de sua carreira. Não se discute a força e o impacto de “Definitely Maybe” naquele ano de 1994, mas, acima de tudo, ele é o trabalho que marca a chegada de uma banda que queria ser grande e permanecer presente por muito tempo. Ainda que seja mais fácil observar isso hoje, trinta anos depois, já dava pra sacar que os irmãos Noel e Liam Gallagher não eram dois meros aventureiros do rock alternativo inglês, então em franco processo de renascimento. Aqueles caras, com cabelos derivados dos cortes clássicos dos Beatles, mal encarados, com o mais novo deles, Liam, cantando como se fosse um gato rouco à frente de uma barreira harmoniosa de guitarras, eram, finalmente, novidade. E havia no som que faziam, muito mais de rock inglês clássico, setentista e pós-punk ao mesmo tempo, do que em similares que começavam a pipocar por aqui, como o rival Blur, por exemplo. O Oasis aspirava ser gigante e perseguiu este objetivo até estourar mundialmente com o álbum seguinte, “What’s The Story Morning Glory” (1995) e se consolidar no topo com o terceiro – e meu preferido – “Be Here Now” (1998).
Dá pra dizer que estes três discos, mais os lados-B dos singles que vieram deles, compõem algo como “o Oasis clássico”. Ancorada tanto na presença dos músicos (além dos Gallagher, Paul “Bonehead” Arthurs, nas guitarras; Paul McGuigan, no baixo e Tony McCarroll na bateria), quanto no próprio mecanismo de composição, todo a cargo de Noel, a força do Oasis nestes três primeiros álbuns coloca a banda de Manchester como a mais importante do mundo durante o período de 1995 a 1998, pelo menos. A partir do quarto álbum, “Standing On The Shoulder Of Giants” (2000), a força e a configuração da banda mudariam, mas isso é assunto para outro texto. Por enquanto, vamos nos dedicar a falar sobre a primeira parte desta trilogia inicial, que veio ao mundo no dia 29 de agosto de 1994. Na verdade, a chegada do primeiro disco do Oasis já era aguardada com ansiedade na Inglaterra. A banda estamparia a capa da NME pela primeira vez em 4 de junho, ou seja, mais de dois meses antes do lançamento do disco. Explica-se: um dos grandes charmes do Oasis inicial era o lançamento de singles com vários lados B bacanas. O primeiro deles, “Supersonic”, saiu em fevereiro daquele ano e continha, além da faixa-título dois lados B: “Take Me Away” e “I Will Believe” (ao vivo), além de uma versão alternativa para “Columbia”, sendo esta uma faixa que constaria do álbum oficial. Sendo assim, quando chegou à capa do semanário inglês, a banda já era conhecida pela maioria dos leitores e o burburinho sobre sua estreia só fazia aumentar.
Em 20 de junho chegou o segundo single – “Shakermaker”, que tinha outros dois lados B: “D’Yer Wanna Be A Spaceman?”, “Alive” (versão demo), além de uma versão ao vivo de “Bring It Down”, outra faixa que estaria no disco. Em 8 de agosto, chegou o terceiro single: “Live Forever”, que também contava com uma versão inédita de “Supersonic”, gravada ao vivo, a releitura acústica de “Up In The Sky” mais um lado B: “Cloudburst”. Dessa forma, quando foi lançado, “Definitely Maybe” confirmou as expectativas e trouxe uma banda que já iniciava sua trajetória sabendo exatamente o quê e como fazer. Mas, afinal de contas, quem eram esses tais de Gallagher? O que faziam, como se alimentavam? Onde viviam? Pois bem.
O Oasis foi formado em Manchester em 1991, trazendo em sua formação Liam Gallagher (vocais), Paul “Bonehead” Arthurs (guitarra), Paul “Guigsy” McGuigan (baixo) e Tony McCarroll (bateria). A lenda diz que Noel Gallagher (guitarra solo, vocais) entrou para a banda porque já tinha experiência no vai e vem dos shows, uma vez que fora roadie de outra banda da cidade, o Inspiral Carpets. Noel viu o quarteto tocar numa espelunca qualquer e ficou impressionado com o que viu, especialmente com a performance do irmão nos vocais. Aceitou fazer parte desde que fosse o líder e assumisse integralmente os trabalhos de composição das canções, função que exerceu até 2000, quando Liam começou a escrever algumas faixas. Com esta configuração, os sujeitos começaram a ensaiar as novas músicas e continuaram a se apresentar em pequenos espaços da região, gravando o máximo que podiam. Uma fita demo chegou aos ouvidos de Alan McGee, da Creation Records, que, após ver uma dessas apresentações, decidiu comprar o passe do Oasis. Em pouco tempo, os cinco estavam no estúdio profissional de Monnow Valley, no País de Gales, local onde também estava a banda mais importante de Manchester naqueles tempos, o Stone Roses, então em vias de lançar o seu segundo – e esperadíssimo – álbum.
Ainda que as gravações tenham corrido bem, a sonoridade obtida não era nem a sombra do que a banda conseguia render ao vivo. Ao ouvir o resultado, McGee resolveu regravar tudo o que foi feito e contou com o aval do grupo, que também não ficara satisfeito com os resultados. Com novas datas marcadas para o início de 1994, o Oasis adentrou o Sawmills Studio, nos cafundós da Cornualha, sudoeste da Inglaterra, numa localidade que só era acessível de barco. Lá, isolados, os integrantes conseguiram aumentar a força das gravações com um método bem simples – tocando juntos. Com Liam separado numa cabine, os outros integrantes reproduziram a energia do palco em takes curtos e diretos, que agradaram a todos. Eles também trouxeram o engenheiro de som Owen Morris, que mixou o LP de uma maneira que lhe deu sua sonoridade característica, incluindo o pequeno chiado de feedback que ouvimos hoje.
É importante dizer que, quando o primeiro disco do Oasis foi lançado, o “Britpop” ainda não era algo completamente estabelecido. O termo foi cunhado por um apresentador da BBC, Stuart Maconie, em 1993, ao se referir às bandas inglesas que surgiam em grande quantidade naquele tempo. Dá pra dizer que formações como Suede e Blur, além do Manic Street Preachers e do próprio The Verve, eram realidade quando “Definitely Maybe” chegou às lojas. Talvez o grupo dos Gallagher tenha sido, de alguma forma paradoxal, o mais internacional dos novos artistas britânicos que surgiam. Inicialmente, o Oasis parecia decididamente britânico, com influências que iam de Slade, T. Rex e Sex Pistols aos Beatles. Este olhar para os anos 1970, misturado ao próprio olhar de Noel Gallagher para a cena local de Manchester e sua experiência com os Inspiral Carpets, certamente se configurou num diferencial para que o Oasis se saísse com um trabalho tão rock, tão britânico e, ao mesmo tempo, tão pop e tão “internacional”. Não por acaso, “Live Forever”, o terceiro single do álbum, estourou nos Estados Unidos via MTV. Daí em diante, a banda entrou no mapa dos fãs americanos e, quando lançaram o segundo álbum, foram devidamente alçados ao patamar de ídolos.
Quase todas as onze faixas de “Definitely Maybe” se transformaram em clássicos ou favoritas do público que lotou os show do Oasis ao longo dos anos. De fato, as primeiras gravações do grupo mostram uma força pós-adolescente que eles, por mais que tenham feito sucesso em lançamentos subsequentes, não conseguiram reproduzir. Existia uma raiva de natureza “working class hero”, algo na própria postura desafiadora dos sujeitos, que parecia apontar para um orgulho de pertencer a uma cidade operária, a um estrato social que não era abastado. Quando apareciam com suas camisas do Manchester City, os Gallagher assumiam esse orgulho de dar voz a uma multidão de jovens que não tinham condições de frequentar escolas de arte, de posar de cults e antagonizavam diretamente com toda uma geração de figuras que poderiam ser consideradas “esnobes”. Talvez por isso sua “rivalidade” com os londrinos do Blur tenha sido tão promovida pela sensacionalista imprensa britânica: eram dois lados diferentes habitando um mesmo contexto. Os Gallagher ainda turbinavam seu identkit com brigas homéricas entre os irmãos e uma adorável egolatria por parte de Noel, que se assumia como gênio e, quando acusado de imitar os Beatles, mandava frases como “se a gente vai copiar, vamos copiar dos melhores”.
“Rock’n’Roll Star”, “Live Forever” e “Supersonic” constituem a trinca avassaladora de “Definitely Maybe”. Estas canções sintetizam a urgência e a força que a música inicial do Oasis tinha quando surgiu. Os arranjos sugerem uma versão moderníssima do rock clássico setentista britânico e, se há alguma influência de Beatles em alguma dela, deve ser de faixas como “Helter Skelter”, uma vez que o peso das guitarras é o elemento principal, junto do canto de Liam, que se tornaria um dos vocalistas mais peculiares e celebrados de sua geração. Além dessas três, “Slide Away” surgia como um insight da capacidade baladeira do grupo, que se relevaria com força no álbum seguinte. Ainda que não fosse uma banda essencialmente política, a postura desafiadora do Oasis foi vinculada imediatamente ao povão mais ferrado. A economia não ia nada bem sob o governo do Primeiro Ministro conservador John Major, que havia sucedido margaret thatcher em 1990 e isso contribuía para linkar alguns momentos do álbum com o binômio desesperança/raiva. Na própria “Rock’n’Roll Star” há o escapismo de versos como “Na minha mente, meus sonhos são reais” ou “Hoje à noite eu sou uma estrela do rock ‘n’ roll”. Em “Bring It on Down”, temos: “Você é o pária / Você é a classe baixa / Mas você não se importa, porque você está vivendo rápido”. Em “Cigarettes & Alcohol” temos: “Vale a pena a agitação / Encontrar um emprego quando não há nada pelo que vale a pena trabalhar?”.
Não se fala em outra coisa a não ser a volta do Oasis. Separados desde 2009, Liam e Noel decidiram agendar apresentações ao vivo na Grã-Bretanha, no primeiro semestre de 2025. O frenesi por lá é geral e dá pra sentir que, quando as pessoas celebram este retorno, estão falando, justamente, desta primeira fase da carreira do Oasis, na qual “Definitely Maybe” tem protagonismo. É, claro, um meio de voltar trinta anos no tempo e sentir de novo a excitação de ouvir um álbum assim, talvez porque já não tenhamos a mesma idade – e juventude – que tínhamos em 1994. Eu lembro claramente de comprar o meu exemplar em CD na filial Tijuca das Lojas Americanas, provavelmente a caminho da Uerj, quando eu cursava Jornalismo. Minha mãe era viva, eu tinha uma namorada linda e um monte de ambições que ficaram pra trás. Em troca, a vida me deu muita coisa, muitas pessoas e felicidades, claro, às custas de sofrimento e perdas, mas é assim que o jogo é jogado. Não troco o presente pelo passado, mas lembro que 1994 foi, de fato, um ano bem bacana para mim. Talvez esse tipo de análise deva ser feito em paralelo à importância de “Definitely Maybe”. Algumas de suas músicas sobreviveram ao teste do tempo e serão postas à prova novamente, quando os Gallagher subirem no palco. E a roda gira.
PS: amanhã, dia 30 de agosto, o Oasis lança a versão comemorativa de trinta anos do álbum, contendo quinze faixas extraídas das sessões originais no estúdio Monrow Valley e no Sawmills, que ajudarão a mapear a evolução das sonoridades e como o álbum adquiriu a forma final. É caça-níqueis, mas vale à pena.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.