Boogarins e a psicodelia popular brasileira

 

 

 

 

Boogarins – Bacuri
41′, 10 faixas
(Urban Jungle/OneRPM)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

Se tocar rock no Brasil de hoje não é tarefa fácil, imagina fazer a vertente psicodélica contemporânea dele. Num lugar em que o gosto massificado das pessoas prefere sertanejos, pagodões, arrochas e versões empobrecidas do pop eletrônico atual, o Boogarins segue firme com sua proposta sonora. Mais ainda: segue firme e em evolução na busca de uma identidade musical que dê conta do paradoxo de, além de criar e produzir este tipo específico de música no Brasil, ser originário do epicentro desta produção popularesca atual: Goiânia. Se podemos falar em algo como um “novo rock brasileiro” em tempos atuais, certamente a década de atividade do Boogarins faz parte integrante disso. Benke, Raphael, Ynaiã e Dinho, mais calejados hoje em dia, já têm bastante história para contar e rodagem em aventuras e desventuras aqui e no exterior. De uma forma bastante natural, “Bacuri”, este novíssimo trabalho do grupo, marca uma volta ao começo, dentro de casa, aproveitando e contemplando as delícias da paternidade, do amor tranquilo e da maturidade.

 

Já se vão cinco anos desde o último trabalho de inéditas, “Sombrou Dúvida”. Neste espaço de tempo, o Boogarins investiu numa solidificação de sua carreira internacional, tocando no exterior e procurando permanecer por lá a maior parte do tempo. Sabemos que isso é custoso, cansativo e nem sempre fornece os resultados desejados, mas os sujeitos se saíram relativamente vencedores nessa contenda. No meio do caminho, coletaram dois álbuns de gravações com o título de “Manchaca: A Compilation of Boogarins memories, demos and outtakes from Austin,TX”, que documentou o processo criativo deles em uma casa, na qual viveram no exterior. Enquanto viviam esta aventura e enfrentavam as adversidades do processo, os integrantes da banda iam compondo novas canções no meio dos caminhos, o que dá a “Bacuri” um resultado diverso e dinâmico. Gravado e produzido “em casa”, o disco marca um retorno ao processo criativo do primeiro disco, “Plantas Que Curam”, que completou dez anos de lançamento. Em paralelo, “Bacuri” é o trabalho mais bem acabado em estúdio, com arranjos mais bem cuidados, com texturas, camadas e alternativas.

 

Com produção assinada pela banda e pela engenheira de áudio Alejandra Luciani, o disco foi gravado na casa em que ela, Raphael Vaz e Dinho Almeida moram em São Paulo. “Na pandemia, as incertezas do mundo se juntaram às nossas próprias incertezas”, explica Benke Ferraz, “depois de conversas com produtores estrangeiros e planos frustrados com nossa antiga gravadora americana, decidimos desacelerar a corrida maluca de carreira internacional que nos movia involuntariamente desde os primeiros passos profissionais da banda”, completa. Tal movimento deu mais serenidade ao processo e se refletiu no álbum, que foi feito, pensado e concebido coletivamente. O resultado é menos “doidão” e mais centrado, detalhe que fez bem ao resultado final. Se “Bacuri” denomina um fruto da região amazônica e do cerrado, também é usada como sinônimo de “criança” em alguns lugares do Brasil. “É engraçado que sempre nos chamaram de ‘meninos’ e agora os ‘meninos’ são outros, os nossos filhos”, sintetiza Benke. Composta por Ynaiã Benthroldo, a canção que dá nome ao disco é dele, e a primeira cantada pelo baterista.

 

A sonoridade que “Bacuri” traz é adorável. Tem muito de referências modernas de psicodelia, especialmente Tame Impala e Pond, mas tem um amor declarado e assumido por influências brasileiras dos anos 1970, especialmente “Clube da Esquina” e carreiras solo de seus participantes, destacando Beto Guedes e Lô Borges. O single “Corpo Asa” mais parece uma criação da dupla, sonorizada pelo Boogarins, tamanha a identidade lírica e sonora que traz. A sensação se amplia ao longo do álbum, em lindezas como “Chuva dos Olhos” e “Poeira”, que parecem descendentes diretas de faixas do “disco do tênis”, a estreia solo de Lô, de 1972. Em “Me Dè um Som” já aparece mais a veia do rock alternativo americano dos anos 1990/2000, o que serve de referência para situar a obra dos sujeitos no presente e impedir qualquer tipo de excesso na bichogrilice. O mesmo pode ser dito de “Amor de Indie”, que vai do trocadilho infame com a belíssima “Amor de Índio”, que Beto gravou em 1978, à apropriação de tons e climas, num resultado bem bonito. “Compartir” também vai neste mesmo caminho, quase um folk psicodélico de almanaque, com boa melodia e arranjo eficiente. No fim, “Deixa”, mais parece algo de Zé Rodrix reencarnado e reempacotado para hoje.

 

Com um 2024 fértil em shows e projetos, o Boogarins apresenta o álbum novo, comemora os dez anos de sua estreia e exercita suas identidades em apresentações da série “Boogarins Toca Clube da Esquina”, espetáculo em que mostram a sonoridade da banda em clássicos da música brasileira dos anos 1970. A quantidade de trabalho é diretamente proporcional ao talento dessa galera. Ouçam “Bacuri”, uma lindeza da psicodelia popular brasileira, onde e quando ela estiver.

 

 

Ouça primeiro: “Corpo Asa”, “Chuva dos Olhos”, “Bacuri”, “Compartir”, “Amor de Indie”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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