Bristol, Diáspora e Massive Attack

 

 

Originalmente publicado em 29 de novembro de 2013 no Monkeybuzz – link aqui.

 

Vamos supor que você é um jovem estudante jamaicano de 19 anos em pleno 1951. Após algum tempo deliberando sobre o grande passo por dar, a decisão é finalmente tomada: você vai mesmo para a Inglaterra, a metrópole, uma vez que a Jamaica só declararia sua independência onze anos depois. As opções de destino não são muitas e, talvez por conta da facilidade portuária, da disponibilidade e pela tendência observada recentemente – muita gente de colônias britânicas rumando para a cidade – Bristol é a melhor escolha. Dito e feito: Você pega tudo que tem e desembarca no porto do sudoeste inglês, bem em frente ao Atlântico.

 

Esses foram os passos dados por Stuart Hall, fã de Miles Davis e importantíssimo teórico da cultura e dos meios de comunicação, sendo um de seus maiores feitos o estudo sobre o impacto cultural da diáspora negra sobre a sociedade contemporânea. Traduzindo: Hall estudou e mapeou os efeitos das migrações de negros, seja a partir da África para colônias americanas, seja destas colônias em processo de independência, para a Europa. Ele mesmo foi um sujeito dessa tendência, iniciada séculos antes, gerando efeitos desde muito longe no tempo. Bristol, a cidade para onde Hall se dirigiu, foi um dos pólos receptores de imigrantes negros, sobretudo no pós-Segunda Guerra. Várias oportunidades de emprego, de melhoria de vida surgiram. Além disso, era tradição estudar nas prestigiosas universidades do Reino Unido, tendo Hall ido para Oxford (terra de Ride e Radiohead) e, mais tarde, para Birmingham (lar de Black Sabbath e Duran Duran).

 

Bristol foi recebendo os imigrantes, que foram dando contornos especiais à vida da cidade. Em pouco tempo, o porto do sudoeste da Velha Ilha era uma metrópole multirracial. Nos anos 70, já era possível notar o surgimento de uma cena cultural fértil, sobretudo por conta da assimilação da música negra, inicialmente na forma do Reggae e do Ska, que chegaram com os jamaicanos contemporâneos de Hall. Pouco tempo depois viria a influência americana através do Rap e do Hip Hop, sem falar na crescente importância do graffiti. Em 1980, surgiu o primeiro conflito racial mais importante, no distrito de St.Paul. O motivo? O de sempre, ou seja, a juventude sem oportunidades, entregue às drogas, sem emprego ou escola decentes. O governo de Margaret Thatcher, não exatamente famoso por lidar com tato nessas horas, personificado pela polícia, promoveu a prisão de 130 pessoas após atacar o Black And White Cafe, famoso pela presença de traficantes e gangues.

 

St. Paul foi o primeiro de uma série de conflitos entre polícia e jovens negros de Bristol. Em 1983, seguindo a tendência vinda da Jamaica, alguns jovens decidem fundar um soundsystem, ou seja, uma espécie de grupo no qual os equipamentos para discotecagem, além dos próprios discos escolhidos pelos integrantes, fazia a distinção. Vários deles foram fundados nessa época por toda a cidade e logo era bastante comum o surgimento das batalhas entre eles, derivadas da cultura Hip Hop, a partir dos desafios de rima entre os chamados masters of ceremony, ou MC’s. O Wild Bunch foi um desses grupos, integrado por jovens da região de St.Paul, entre eles, Robert del Naja (grafiteiro, conhecido como 3D), Grant Marshall (Daddy G), Andrew Vowles (DJ. Mushroom). Estes três sujeitos formariam em 1987 o Massive Attack. Além deles, participavam Adrian Thaws (Tricky Kid), Nellee Hooper, Claude William (Willie Wee) e Milo Johnson (DJ Milo), todos pobres, ferrados, crescidos em meio aos becos e ruelas dessa cidade partida e múltipla. Como Wild Bunch existiram entre 1983 e 1986, chegando a incluir, além do Hip Hop, influências de R&B clássico, Reggae e Punk Music em suas apresentações. A banda viria logo após. Com a crescente inovação vinda das fusões entre música negra e branca, um estilo surgiu, personificado na própria existência da banda, o Trip-Hop. A tendência underground da cena musical, a exploração de tons cinzentos e negros nos grafites pela cidade, cortesia de gente como Banksy, por exemplo, além das próprias noções de negro como oposto de branco, coexistindo, gerou uma sonoridade que emulava essa sensação.

 

Logo, era possível ouvir o novo som pelas festas mais antenadinhas. Baixo no máximo, cortesia do uso do instrumento no Reggae e no Dub, toques esparsos de guitarras herdadas de trilhas sonoras sessentistas, clima de desolação, tristeza, lado negro da Força. O pessoal do Massive Attack daria o pontapé inicial com o lançamento de Unfinished Sympathy. Nellee Hooper dividia-se entre a banda e seu outro projeto, Soul II Soul, igualmente militando na atualização de ritmos negros naquele início de nova década. Com o lançamento de Blue Lines, primeiro disco do Massive Attack em 1991, a história era escrita. A música que esse pessoal pensou era absolutamente inédita. Era dançante, mas cheia de detalhes, de nuances e de surpresas. A gravidade do baixo, a intervenção de cantoras sensacionais como Shara Nelson, que respingavam nas grandes divas negras dos anos 50 e 60, além da total criatividade. Logo após o primeiro single, veio Safe From Harm e uma cover encrustrada no disco, Be Thankfull For What You Got, hit setentista de Willie deVaughn.

 

O termo Trip-Hop, no entanto, só seria cunhado em 1994, quando, além do Massive Attack, outra formação de Bristol aparecia para o sucesso: Portishead, que lançava seu primeiro disco, Dummy. Enquanto M.A. era 100% influenciado por música negra, essa outra era um pouco mais misturada, tendo na figura angustiada da cantora Beth Gibbons a sua marca registrada. Massive Attack lançaria seu segundo disco neste ano, o soberbo Protection. A faixa-título, com participação da vocalista do Everything But The Girl, Tracey Thorn, produzida por Nellee Hooper, está entre os momentos mais sensacionais da música na década de 1990.

 

Enquanto a imprensa musical se voltava para a nascente disputa entre Oasis e Blur, dentro do escopo do Britpop, a cena eletrônica da época, uma das mais férteis e sensacionais de todos os tempos na música Pop, ficou bem próxima do underground, com momentos de exposição moderados. Talvez a influência quase total da absorção de ritmos negros por parte de quem se aventurava nas releituras de Hip-Hop, Funk, Jazz e tudo mais, sob a lente Techno, ficava restrito às publicações mais especializadas. Trip-Hop, Drum’n’Bass, Big Beat, entre outras variações, surgiram da necessidade desses novos artistas comunicarem suas experiências e escopo sonoros, praticamente imersos no turbilhão racial intenso, original da presença de uma grande parcela de negros nas cidades inglesas.

 

Massive Attack está em atividade até hoje. Lançou seu disco mais popular em 1998, Mezzanine, provavelmente o preferido entre a maioria dos fãs. Seus integrantes foram debandando, só restando Robert Del Naja da formação original. Mesmo com discos bons feitos a partir de Mezzanine, este mesmo um belo trabalho, nada é mais interessante que esse início da carreira da banda, em meio às questões que já apresentamos lá no início do texto. A música produzida nessa época, cheia de fatores que não levavam em conta grana, fama ou outro item adjacente, foi poderosíssima, espontânea e instigante. O velho Stuart Hall, diante dos seus atuais 82 anos, deve ter uma grande simpatia por esses ruídos das ruas. Sempre são vozes e sons que devem ser escutados e nunca esquecidos.

 

OBS: Stuart Hall, mencionado no texto, faleceu em 10 de fevereiro de 2014

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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