Trinta Anos Sem Cazuza

 

 

Já se vão 30 anos desde a morte de Cazuza. Vítima da AIDS, teve a doença exposta na mídia dos anos 1980, quando o assunto ainda era tabu, muito pela falta de informação, além da própria moléstia surgir como algo absolutamente terrível e irremediável. Ele tinha 32 anos de idade e menos de dez anos de carreira, levando em conta o tempo que passou à frente do Barão Vermelho e seus discos solo.

 

Seu temperamento boêmio, sua natureza libertária e sua condição social privilegiada (era filho de João Araújo, um alto executivo da gravadora Som Livre) conferiram a identidade de “poeta” a Cazuza. Suas letras refletiam com precisão o cotidiano da juventude abastada daquele Rio de Janeiro da virada dos anos 1970/80, no qual instalava-se o novo rock produzido no Brasil, influenciado por estéticas como o pós-punk inglês e a New Wave americana. Além disso, Cazuza tinha apreço pelas influências de gente como Rolling Stones, The Doors e Janis Joplin, restando lugar para admirar artistas nacionais como Cartola e Mutantes.

 

Teve sucesso à frente do Barão Vermelho, banda em que esteve até o início de 1985, e que deixou para seguir em carreira solo, lançando mais quatro discos. Foi logo no primeiro, “Exagerado”, que tornou-se um popstar nacional, com identidade própria, sempre vinculado a excessos e à juventude que emergia como consumidora daquele conjunto de sons e ideias. Como artistas solo conheceu popularidade impressionante, ajudado por composições em trilhas sonoras de novela, mas também por vivenciar uma notável maturidade como compositor, tornando-se um cronista romântico e, mais tarde, vitimado pelo avanço da AIDS, num feroz crítico da sociedade, muitas vezes partindo para o viés político, mas sem um foco definido, preferindo cutucar mais a apatia de sua geração do que os desmandos dos políticos.

 

Cazuza não teve pudor em expor-se já fragilizado pela doença. O público acompanhou seu calvário e lotou o Cemitério São João Batista, no Rio, onde foi sepultado. Sua carreira permanece forte e relevante através do tempo.

 

Escolhi as 25 canções mais importantes de Cazuza, seja com o Barão Vermelho, solo ou gravada por outros intérpretes. Elas fornecem um panorama expressivo de sua trajetória, constituindo, salvo uma ou outra discordância, os seus melhores momentos.

 

Cazuza faleceu em 07 de julho de 1990, há 30 anos.

 

 

“Exagerado” (1985)

Composta com Ezequiel “Zeca” Neves e Leoni, “Exagerado” tornou-se, como o próprio Cazuza admitia, o seu “cartão de visitas”. A letra foi escrita tendo em mente o grande amigo Zeca, mas, como eram muito parecidos, os versos acabaram encaixando perfeitamente na persona boêmia do cantor. Foi seu primeiro sucesso solo, faixa-título de seu primeiro álbum, lançado em 1985, logo após a saída do Barão Vermelho.

 

 

“Vai À Luta” (1987)

Canção do melhor trabalho de Cazuza, seu segundo disco “Só Se For A Dois”, lançado em 1987. A letra foi escrita tendo em mente o então Ministro da Fazenda, Dilson Funaro, que surgia nas televisões do país como um dos arquitetos do Plano Cruzado, que mostrou ser um fracasso retumbante. Funaro caiu em desgraça logo após. Cazuza também reflete sobre a efemeridade da fama e ainda traz uma frase de Millor Fernandes: “Os fãs de hoje são os linchadores de amanhã’!”. Composta com Rogério Meanda.

 

“O Tempo Não Para” (1988)

Canção originalmente gravada pelo grupo Hanoi Hanoi, do baixista e cantor Arnaldo Brandão, que pediu a letra para Cazuza. A música tornou-se o maior símbolo da fase final da carreira do cantor, já debilitado pela AIDS e furioso por conta disso. A partir da luta contra a doença, Cazuza voltou-se para temas mais amplos e políticos, passando a questionar os rumos do país e da sociedade. O resultado foi tão forte que ela deu nome ao primeiro disco ao vivo dele, gravado no Canecão e lançado em 1988, após turnê nacional.

 

“Solidão Que Nada” (1987)

Outra faixa de “Só Se For A Dois”, essa canção foi composta em parceria com Nilo Romero, integrante da banda que acompanhava Cazuza e narra uma despedida que Romero teve num aeroporto. Por conta da dificuldade em dizer adeus para uma namorada da época, ele atrasou um vôo no qual Cazuza também estava. O resultado foi uma balada doída, bem feita, falando da vida na estrada, na qual convivem o glamour e a saudade.

 

“O Nosso Amor A Gente Inventa (História Romântica)” (1987)

Primeiro single de “Só Se For A Dois”, composta por conta de uma decepção amorosa vivida por Rogério Meanda, outro músico participante da banda que acompanhava Cazuza no estúdio e ao vivo. Meanda fez a melodia que se encaixou perfeitamente na letra, que contem versos muito bem feitos como “o teu amor é uma mentira que a minha vaidade quer”. Ponto alto da carreira de Cazuza.

 

“Ideologia” (1988)

Outra canção que marca a fase política de Cazuza. Foi composta com Frejat no início de 1987 e fala sobre a dificuldade que a juventude daquela segunda metade de década de 1980 tinha em abraçar uma ideologia, mesmo após tanto tempo vivido sob a ditadura militar. “Ideologia é comunidade, o contrário de solidão.”, declarou Cazuza em entrevistas à época. A canção deu título a seu terceiro álbum, lançado em 1988.

 

“Faz Parte do Meu Show” (1988)

Grande sucesso da trilha sonora da novela “Vale Tudo”, exibida em 1988, pela Rede Globo. Foi gravada originalmente, em 1986, pelo grupo Herva Doce. Muita gente – de forma equivocada – dizia que o arranjo optava por uma sonoridade “New Bossa”, mas Cazuza quis que sua versão da canção enveredasse por uma estética tradicional de Bossa Nova, com arranjo de cordas e violão bem pronunciado. Também tornou-se um cartão de visitas do cantor.

 

“Codinome Beija-Flor” (1985)

Esta canção também tem seu destaque na categoria “cartão de visitas” na carreira de Cazuza e fez muito sucesso a bordo de seu primeiro álbum, “Exagerado”. Foi composta após a primeira internação de Cazuza, ainda em julho de 1985 e fala de relacionamentos amorosos tumultuados em forma de metáforas. Enquanto estava internado no Hospital São Lucas, em Copacabana, Cazuza dizia que um beija-flor sempre vinha à janela do quarto e isso o inspirou.

 

“Pro Dia Nascer Feliz” (1983)

O primeiro grande sucesso do Barão Vermelho foi cantado também por Ney Matogrosso. A letra fala totalmente da rotina boêmia do jovem Cazuza, frequentador dos bares do Baixo Leblon. Também fala sobre amor e as inúmeras conquistas amorosas do cantor, famoso por arrebatar os corações de amigos e amigas daquela época. A canção estourou com as interpretações do Barão e de Ney quase ao mesmo tempo, mas a versão do ex-Secos e Molhados serviu como apresentação daquele novo grupo de rock, que ninguém tinha ouvido. Foi uma especie de credencial do Barão Vermelho.

 

“Preciso Dizer Que Te Amo” (1986) Bebel Gilberto

Letra escrita por Cazuza para melodia composta por Dé Palmeira (baixista do Barão Vermelho) e Bebel Gilberto, que era amiga do pessoal da banda. Os três estavam em Petrópolis e a canção saiu rapidamente, em menos de uma hora. Bebel a gravaria num EP homônimo que lançou em 1986, restando como registro com a voz de Cazuza apenas a fita demo, que foi parar na compilação “Red, Hot And Rio”, lançada em fins dos anos 1990. Teve versões de Marina e Léo Jaime.

 

“Bete Balanço” (1984)

A canção “Bete Balanço” foi gravada pelo Barão Vermelho em março de 1984, para a trilha sonora do filme de mesmo nome, dirigido e escrito pelo cineasta Lael Rodrigues e estrelado por Débora Bloch. Foi uma encomenda da Embrafilme, feita especificamente para o personagem vivido por Débora, restando pouca ou nenhuma identificação com Cazuza. Mesmo assim, a canção é um dos maiores sucessos da carreira do Barão Vermelho.

 

“Poema” (1998) – Ney Matogrosso

“Poema” foi composta por Cazuza para a sua avó paterna, Maria José, em 1975, quando ele tinha 17 anos. A letra seria musicada por Frejat, em 1998, para que Ney Matogrosso a incluísse em seu álbum “Olhos de Farol”.A mãe de Cazuza, Lucinha Araújo, foi enviada para Ney logo após o falecimento de Maria José e Frejat ficou incumbido de musicá-la, só conseguindo perto do prazo dado para a inclusão da canção no álbum. O resultado é belo e mostra uma vulnerabilidade incomum na escrita cazuziana.

 

“Brasil” (1988)

Outra das canções políticas de Cazuza, lançada no álbum “Ideologia”. A versão mais conhecida tem Gal Costa nos vocais, sendo escolhida como tema de abertura da novela “Vale Tudo” em 1988. Apesar das contradições entre a figura boêmia e abonada dele, sua fase política é coerente o bastante para despertar o interesse do público. A canção também caiu como uma luva no momento em que o país se preparava para a primeira eleição direta para presidente em décadas.

 

“Maior Abandonado” (1984)

Faixa-título do último álbum do Barão Vermelho com Cazuza. A letra fala de uma figura maior de idade, que está desamparada em termos sentimentais, mas também queria falar de algum tipo de carência de atenção por parte das autoridades públicas. É um misto de crítica social e crônica romântica que, mesmo não sendo bem resolvido, tornou-se hit nas rádios. A levada stoniana que o Barão imprime à canção faz muita diferença. O verso “Mentiras sinceras me interessam” é típico do ideário amoroso de Cazuza.

 

“Só As Mães São Felizes” (1985)

Mais uma canção boêmia, incluída no primeiro disco solo, “Exagerado”. Ela fala sobre a proximidade que Cazuza e sua mãe, Lucinha Araújo, sempre tiveram. Apesar da letra fazer referências a drogas, sexo e termos como “escravas brancas”, Cazuza sempre disse que essa era uma canção moralista por manter a mãe distante das barras que costumava encerar nos subterrâneos da noite.

 

“Mal Nenhum” (1985)

Dueto gravado com Lobão. Ambos se conheceram por intermédio de Júlio Barroso, ex-Gang 90, que os apresentou na noite carioca. Ambos com fama de difíceis e iniciando carreira solo após participação em bandas, Lobão e Cazuza só compuseram essa canção juntos. Ela teve razoável execução nas rádios e integrou a trilha sonora do filme “Areias Escaldantes”, de Francisco de Paula, lançado em 1984.

 

“Eu Queria Ter Uma Bomba” (1984) – “Trop Clip”/Trilha Sonora “A Gata Comeu”

Esta foi a canção que liquidou com a primeira formação do Barão Vermelho, precipitando a saída de Cazuza. Ele compôs sozinho a letra e a música de “Eu Queria Ter Uma Bomba”, para o filme “Trop Clip” (1985), dirigido por Luiz Fernando Goulart. O clipe foi exibido no programa Fantástico, da Rede Globo, levando a canção também para a trilha sonora da novela global “A Gata Comeu”, em 1984. Ela nunca foi lançada num disco do Barão Vermelho, nem de Cazuza, figurando mais tarde em compilações.

 

“Todo Amor Que Houver Nessa Vida” (1982)

Faixa do primeiro álbum do Barão Vermelho, lançado em 1982 e bastante obscuro até então. As coisas começaram a mudar quando Caetano Veloso a incluiu nos shows da turnê “Uns”, despertando o interesse do público para a poesia de Cazuza. Ela mostra bem o lado romântico do cantor, nada calmo ou plácido, restando até alguma agressividade em seus escritos, mas sempre com muita sensibilidade e sinceridade à sua geração.

 

“Um Trem Para As Estrelas” (1987)

Canção-título do filme dirigido por Cacá Diegues e composta em parceria com Gilberto Gil. O longa conta a história do personagem vivido por Guilherme Fontes, um jovem músico, que batalha na cidade grande em busca de um lugar ao sol. E ele consegue ser admitido na banda que acompanha … Cazuza, que aparece no filme como ele mesmo.

 

“Blues da Piedade” (1988)

Essa é uma canção interessante, reflexiva a crítica, mas sem abraçar a temática política que Cazuza visitava nos últimos anos de sua carreira. Ele funciona mais como cronista do que como crítico, com bons resultados aqui. Fruto da observação do cotidiano e da degradação das pessoas à medida que o tempo passa, a letra de “Blues da Piedade” mostra um Cazuza preocupado com o semelhante, com suas emoções e dúvidas diante do mundo e em como eles são tratados pela vida. É uma letra quase existencial.

 

“Por Que A Gente É Assim” (1984)

Letra escrita com Ezequiel Neves e musicada pro Frejat, sucesso do terceiro e último álbum do Barão Vermelho, “Maior Abandonado”. É uma narrativa de doideiras e drogas através da noite, habitat natural de Cazuza em seus primeiros anos de carreira. É possível dizer que os versos são bem característicos dessa galera da Zona Sul carioca, que varava as madrugadas movida a substâncias químicas de todos os tipos e voltava para casa na manhã seguinte, contando com o porto seguro fornecido pelos pais. Pelo menos, este era o caso de Cazuza. Nem por isso a canção perde sua força.

 

“Subproduto do Rock” (1984) – Trilha Sonora “Plunct Plact Zoom 2”

No auge do sucesso, o Barão Vermelho foi convidado para participar do especial infantil “Plunct Plact Zoom 2” e Cazuza recebeu a tarefa de compor algo completamente estranho à sua lógica de escritor, uma canção que pudesse ser cantada e apreciada pelo público infantil. O resultado mostra boa vontade e bom humor, cabendo ainda uma simpática autocrítica geracional em momentos engraçados como a rima de “rock” com “nhoque”.

 

“Down Em Mim” (1982)

Canção do primeiríssimo álbum do Barão Vermelho, inspirada em “Down On Me”, gravada por Janis Joplin em seu primeiro álbum, “Big Brother & The Holding Company”, de 1966. Cazuza era fã absoluto dela, que passou a ouvir bastante a partir da adolescência, e dizia ser ela a responsável pela sua iniciação ao blues.

 

“Ponto Fraco” (1982)

O primeiro álbum do Barão Vermelho passou despercebido da maioria naquele início de anos 1980. Enquanto Lulu Santos, Blitz e Ritchie dominavam as paradas, os rapazes ainda estavam nos subterrâneos. Esta canção, basicamente sobre dor de cotovelo e amor não correspondido, seria sucesso mediano algum tempo depois, quando a banda estourou.

 

“Burguesia” (1989)

Este foi o canto de cisne de Cazuza. Já bastante debilitado por conta da AIDS, ele registrou as canções de “Burguesia” do jeito que dava, às vezes gravava deitado, outras sentado, por não ter forças para ficar em pé. O disco é fraco, a canção é estranha, panfletária e esquisita, mas está nessa lista como ponto de partida, justamente por ser o seu último sucesso radiofônico. É uma parceria com Ezequiel Neves e George Israel.

 

Texto adaptado a partir de original publicado em 2015 no Mondo Bacana.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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