A música anti-vacina do Eric Clapton

 

Eu nunca fui fã do Eric Clapton. Pra vocês terem uma ideia da relação que tenho com a carreira do guitarrista inglês, gosto mais dele tocando reggae e fazendo parceria nos anos 1980 com Phil Collins do que em qualquer álbum peso-pesado de sua trajetória. Acho que “Forever Man” é sua melhor canção e tenho engulhos ao ouvir a versão acústica de “Layla” ou de “Tears In Heaven”. Mas reconheço que o homem é um gigante da guitarra, um hábil tradutor da linguagem forjada pelo blues acústico e elétrico do pré e do pós-guerra para a psicodelia britânica dos anos 1960. Ele participou do Cream, o que, a meu ver, é uma credencial inequívoca de competência e genialidade. Gravou com os Beatles, enfim, Clapton é um desses artistas gigantescos e ponto final.

 

Talvez por isso sua postura diante da crise da covid-19 seja tão lamentável. A gente espera que nossos heróis tenham uma conduta que espelhe o que pensamos, minimamente. Por essas e outras, a maioria dos fãs de Clapton se decepcionou com as declarações do músico, diminuindo a importância das medidas de distanciamento social, desmerecendo a obrigatoriedade da vacinação em massa e apontando efeitos colaterais suspeitos na vacina AstraZeneca. Também vimos Clapton bradando por liberdade de expressão, lamentando que suas posturas lhe causaram danos sociais, como, por exemplo, o telefone que não mais tocava, os amigos que haviam lhe dado as costas. Tadinho, né? Um senhor de 78 anos, bilionário, sendo cerceado pela sociedade mauzona porque disse que uma doença mortal não é tão séria assim e que a liberdade das pessoas precisava ser respeitada. Neste caso, a “liberdade” seria o direito e ir e vir, contaminar, ficar doente, tornar o próximo também doente e, quem sabe, morrer. Certo?

 

Clapton não esteve sozinho nesta seara. Para minha tristeza, Van Morrison – esse sim, um dos meus ídolos musicais – cerrou fileira com ele. Juntos até gravaram duas canções que iam contra o lockdown (“Stand & Deliver”) e pela liberdade de expressão (“The Rebels”), ambas legais, mas lamentáveis. Basicamente ambos pedem por liberdade de expressão e de ação. No caso da covid-19, é como se eles clamassem pelo direito de dirigir de olhos vendados, numa analogia ao trânsito e aos riscos para motoristas, passageiros e pedestres. É um sistema intrincado de causa e efeito, que, em muitos aspectos, espelha a própria sociedade. Ambos disfarçam este pedido direcionando a discussão em prol dos empregados da indústria de shows, totalmente afetados pela escassez de apresentações, mas, ora, bolas, há várias maneiras de ajudar essas pessoas sem que seja colocada em risco a saúde de multidões.

 

O último capítulo dessa triste passagem na vida de Clapton veio com o lançamento de “This Has Gotta Stop”, que ele divulgou na última sexta-feira, dia 27 de agosto. É mais um libelo por liberdade de expressão e um lamento pelos tempos terem se tornado severos para declarações como as que ele tem feito. Clapton parece não entender a gravidade dessa postura e, para piorar, ainda tem uma horda de gente sem noção que acha que, sim, ele está se posicionando contra o sistema, defendendo sua posição. É uma assustadora prova de que o discurso, qualquer discurso, é totalmente passível de interpretação pessoal e, quando há uma falha no entendimento dessa mensagem, seja por má fé, ignorância ou manipulação, ele pode ter o efeito contrário. Ou seja, não importa se a postura defendida por Clapton é temerária e, neste caso, o “sistema” tenha adotado a conduta certa, o fato de estar “contra” é o que importa. Esvazia-se o discurso, fortalece-se a postura. Qualquer semelhança com a ascensão de governos antipovo com a pecha de serem “antissistema” NÃO é mera coincidência.

 

Sobre a canção, ela é ótima. Clapton está acompanhado de seus ótimos músicos de apoio, caso de Nathan East (no baixo) e tem a produção do parceiro Simon Climie, num arranjo leve e bacanudo. “This Has Gotta Stop” poderia, por exemplo, estar no bom álbum “Old Sock”, que Clapton lançou em 2013. Infelizmente, não dá pra ouvi-la e dar de cara com a letra que mostra um homem desconectado da realidade e orgulhoso disso. Tenho pena, afinal, é um senhor de 78 anos. Se eu já não era fã, imagine agora.

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

One thought on “A música anti-vacina do Eric Clapton

  • 31 de agosto de 2021 em 12:27
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    Clapton, Morrissey, Van Morrison, esses e mais alguns tem um histórico bem problemático, desses três com certeza minha maior decepção seja o Morrissey por ser fan dos Smiths, e pensar que em uma votação pelo NME Morrissey foi eleito o maior inglês vivo ( putz !!!! ).

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