A medicina manguebeat de Josué de Castro

 

 

Conheço Romulo Andrade daqui de Niterói e das redes sociais já há algum tempo. Lembro de entrar numa sala do Colégio São Vicente de Paula, procurando emprego e cumprimentá-lo. Em seguida ele perguntou: – você é o cara do História por Música, referindo-se à página que tenho no Facebook que procura misturar fatos históricos e explicá-los sob a ótica da produção musical referente. Concordei. O emprego nunca veio, mas ficamos amigos. Romulo é, como eu, fã de música e historiador. No caso ele, doutor e pesquisador da Fiocruz.

 

Dia desses vi um artigo sensacional misturando Manguebeat e Josué de Castro, médico, nutrólogo, professor, geógrafo, cientista social, político, escritor e ativista brasileiro do combate à fome. Apenas isso. Pedi autorização a ele para publicar aqui na Célula Pop e ele concordou. Sendo assim, deixo vocês com a ótima sacada do Manguebeat e de Josué, certamente presente em alma na coisa toda.

 

E aproveito para dizer que o texto original está publicado no site do Jornal Literário da Companhia Editora de Pernambuco, neste link aqui. 

 

 

 

Ô Josué, nunca vi tamanha desgraça[…]
Com a barriga vazia não consigo dormir
E com o bucho mais cheio, comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar

(Nação Zumbi, Da lama ao caos)

 

O olhar de Francisco de Assis França a respeito das desigualdades e particularidades da cidade do Recife foi construído a partir de diversas referências, com destaque especial para uma: a visão transformadora que Josué Apolônio de Castro (1908–1973) trouxe dos mangues e de seus caranguejos “com cérebro”. Os mangues, “fervilhando de caranguejos e povoado de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo” foram, em suas próprias palavras, a Sorbonne do médico pernambucano. Tal qual uma lente que focaliza a imagem de modo a torná-la mais nítida, seu pensamento sobre a fome e o espaço urbano exerceram grande influência nas canções de Chico Science, que enxergava no mangue a força vital que movimentava a capital pernambucana.

 

No manifesto do movimento Manguebeat, de Fred Zero Quatro, fica evidente o papel de Josué de Castro como membro ilustre de um mosaico pop warholiano (acompanhado por Jackson do Pandeiro, Os Simpsons e Malcolm McLaren, o “inventor” da banda Sex Pistols) que mobilizou a efervescente cena cultural da capital pernambucana no início dos anos 1990. A maior influência foi, sem sombra de dúvidas, o romance Homens e caranguejos (1967) de Josué, no qual a ideia do mangue como o “paraíso de cor negra dos caranguejos” foi criada. Mas os conceitos e a visão científica que deram base a essa perspectiva transformadora vieram do clássico do pensamento social brasileiro Geografia da fome (1946), cujo lançamento completa 75 anos em 2021.

 

Josué, através de um diálogo com diversos campos do conhecimento, se consolidou como herdeiro intelectual de uma tradição transformadora da Geografia. Sua reflexão apontou as agruras e as causas da desigualdade social que imperava na capital pernambucana e no restante do país. No entanto, diferentemente do determinismo predominante no pensamento social brasileiro da época — segundo o qual o clima seria a principal razão para a “decadência” da civilização brasileira —, propôs caminhos para a superação dessa chaga. Em Geografia da fome, trouxe para o centro do debate um tema incômodo para um país que se pretendia moderno e urbano: a fome. Mais do que isso: ofereceu, por meio de sua medicina voltada para a pobreza, uma interpretação do Brasil.

 

Onde muitos autores viam impossibilidades, Josué enxergava transformação, pois, para ele, “o mal era de fome e não de raça”. Fugindo das teses que relacionavam a mistura racial brasileira a uma suposta degeneração inescapável, afirmou que “a degenerescência do povo é o resultado mais da organização econômico-social do que de sangue e de clima”. Assim, alinhava-se com outros intelectuais, como Roquette-Pinto (1884-1954), Capistrano de Abreu (1853-1927) e Gilberto Freyre (1900-1987), que deslocaram o debate racial de um contexto biológico-fatalista para uma perspectiva cultural. Os inimigos não seriam o meio ou a “raça”, mas as dietas precárias, as más condições de habitação e de higiene, que proporcionariam às doenças rurais um terreno fértil de proliferação. O acesso à saúde seria um meio de redenção, relegando definitivamente as teorias racistas à obsolescência. Em termos atuais, poderíamos chamar a medicina defendida por Josué de Castro de antirracista.

 

No 75º ano de lançamento de Geografia da fome, é importante lembrar da urgência que Josué possuía para lançá-lo. Hoje também urge trazê-lo novamente para o debate público, pois a fome retornou à pauta do dia, infelizmente. Para o médico pernambucano, ela era um elemento central para a história do Brasil e, do mesmo modo, um aspecto estruturante do mundo moderno. O historiador James Vernon aponta que, na Inglaterra imperial, a fome era vista como uma punição aos preguiçosos e aos mendicantes, além de disciplinadora: ensinaria a essas pessoas a moral do trabalho. O que teria causado essa mudança de paradigma em relação à fome e, consequentemente, à pobreza? Uma boa pista é observar a particularidade do momento no qual Geografia foi lançado.

 

O uso da fome como arma de guerra não era novo, haja vista as políticas colonialistas dos países europeus em territórios asiáticos e africanos (como destacou Mike Davis no devastador Holocaustos coloniais). Mas o trauma provocado pelas imagens de corpos famintos assassinados na Segunda Guerra Mundial despertou os dirigentes, políticos e sobreviventes para as trágicas consequências destes atos. Não à toa, desde 1943 os países aliados já discutiam a criação de agências internacionais voltadas especificamente para o combate à fome e à desnutrição, como a agência de alimentação e agricultura das Nações Unidas, a FAO.

 

Um dos principais argumentos da obra é a centralidade da fome frente às outras doenças e à própria história humana: ela seria a causa principal das guerras e das grandes epidemias. Dessa forma, o fenômeno da alimentação, segundo o pernambucano, seria ponto de referência para o estudo ecológico das ações e reações dos seres vivos diante das condições impostas pelo meio. O diagnóstico do problema dos hábitos alimentares passava também pelos (poucos) estudos encontrados sobre o assunto: enfatizavam apenas aspectos parciais do processo e nunca suas relações econômicas, biológicas e sociais. O estudo total da fome e da alimentação foi a grande contribuição de Josué de Castro. Para tanto, lançou mão do método geográfico interpretativo de Vidal de La Blache e Carl Ritter, a fim de delimitar e analisar o fenômeno da fome no Brasil. A “revalorização fisiológica do homem” passaria pelo estudo das mais diversas fomes: desde a fome total, que atingia áreas de extrema miséria em contingências excepcionais, até a fome oculta, entendida como a falta de determinados nutrientes fundamentais — ou seja, levando à morte lenta e silenciosa populações inteiras, por mais que comessem diariamente. Por isso mesmo, era considerada a forma mais grave de privação alimentar.

 

Logo, estruturas econômicas e sociais teriam seríssimas consequências biológicas: o latifúndio e a monocultura eram causadores da fome. Para compreender essas deficiências em suas diversidades regionais, ele dividiu o Brasil em cinco áreas alimentares: Amazônia, Mata do Nordeste, Sertão do Nordeste, Centro-Oeste e Extremo-Sul. As três primeiras, por terem mais da metade da população em estado carencial, estariam nas áreas de fome. Com Geografia, Josué colaborou com a interpretação de um Brasil doente, o “imenso hospital” proclamado pelo médico Miguel Pereira em 1918, cujas doenças não teriam origem apenas na pobreza, mas também na desnutrição e nos maus hábitos alimentares. Em seus projetos iniciais, esse seria o primeiro de cinco volumes dedicados às manifestações da fome em outras áreas: América espanhola e inglesa, África, Oriente e Europa, respectivamente. Não conseguiu concretizar seu intento, porém publicou outro livro de grande prestígio internacional, no qual deu continuidade às suas reflexões. Geopolítica da fome, de 1951, representou o seu esforço de compreender o assunto em perspectiva comparada com outros países.

 

O Brasil, nas tintas do intelectual pernambucano, seria um lugar onde a desigualdade reinante encontraria na fome sua consequência mais trágica, mas também sua redenção. Além de apontar o problema, Josué, assim como outros cientistas de sua geração, buscou as soluções. Os anos após a ditadura do Estado Novo (1937–1945) foram pródigos em projetos para o país. Alguns destes, como os que ele defendia, tinham como objetivo superar o subdesenvolvimento do país e a dependência do mercado externo. Subdesenvolvimento esse que, para Josué, não seria a ausência de desenvolvimento, mas sim o produto de um tipo de desenvolvimento mal conduzido e mal distribuído, fruto da concentração de renda. Ele viu na política a possibilidade de levar adiante essas transformações.

 

E pagou por isso. Geografia da fome acompanhou essa ascensão política e intelectual de seu autor, e, em virtude das muitas mudanças pelas quais passava o país, sofreu alterações ao longo das edições. Isso nos revela seus investimentos na compreensão do Brasil dos anos 1950 e 1960: um Estado desejoso de se tornar urbano e que investia na construção de uma imagem — nacional e internacionalmente — de modernidade, em contraponto com seu passado rural. Em seus mandatos parlamentares, Josué de Castro defendeu a reforma agrária e o combate aos latifúndios como forma de vencer a fome. Quando, na edição de 1958, o subtítulo O dilema brasileiro: Pão ou aço foi inserido no livro, o propósito consistia em abordar outra questão incômoda: diante dos avanços da tecnologia agrícola e das possibilidades que uma digna redistribuição das terras poderia oferecer, a fome se constituiria como uma escolha política e histórica. Uma escolha por um projeto de país que o expulsou, em 1964, na primeira lista do Ato Institucional nº 1 e que o levou ao exílio até a morte em 1973.

 

Por fim, importante registrar que mesmo com a celebração dos 75 anos desta obra icônica e com a aproximação dos 50 anos do falecimento de seu autor, Geografia da fome encontra-se esgotado. Sua última edição foi lançada pela editora Civilização Brasileira em 2008, com texto de apresentação redigido pelo geógrafo Milton Santos. Fica aqui um manifesto: é hora de novas edições, novas releituras e novas celebrações para Josué e sua produção. Este hiato talvez se relacione com o que está escrito no prefácio da primeira edição de Geografia: os preconceitos de ordem moral, política e econômica da civilização ocidental, cuja pretensa racionalidade não se interessa e pouco se sensibiliza por um instinto tão primário como o fenômeno da fome. O grito de Chico Science ao fim de Cidadão do mundo parece ser, mais do que nunca, oportuno: “é o zum-zum-zum da capital/ só tem caranguejo esperto/ saindo desse manguezal/ eu pulei, eu pulei/ corria no coice macio/ encontrei o cidadão do mundo/ no manguezal da beira do rio/ Josué!”

 

“Existem 2/3 de pessoas que não dormem porque sentem fome. E 1/3 de pessoas que não dormem por medo dos que sentem fome” – Josué de Castro

 

Romulo Andrade

Músico frustrado e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz. Pobreza, fome e desigualdades sociais são seus temas de preocupação e sua santíssima trindade é formada por Eric Hobsbawm, Brian Wilson e John Lennon.

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