Tricky – Fall To Pieces
Gênero: Eletrônico
Duração: 28 min.
Faixas: 11
Produção: Tricky
Gravadora: False Idols
Eu costumava ter … medo de Tricky. Quando ele surgiu, lá no meio da década de 1990, dissidente do Massive Attack, com sua voz murmurada, sua imagem meio perturbadora, eu não gostava do que ele fazia. Mas, com o tempo, este resolvedor de problemas, percebi a genialidade de seu trabalho e entendi seus motivos. Saído do bairro periférico de Knowle West, em Bristol, Adrian Thaws, o Tricky Kid, tem uma vida de exorcismos de dificuldades, tudo isso traduzido em postura, em música, em genialidade travestida de escuridão em forma de melodia. Enquanto moldou seu approach ao longo de treze álbuns até o novíssimo “Fall To Pieces”, ele também lapidou sua persona, trocou de musas vocais e cometeu algumas das canções mais perturbadoras da virada do milênio, especialmente em trabalhos como “Maxinquaye” e “Pre-Millenium Tension”. Depois, já no século atual, ele conservou sua relevância e chegou até agora, novamente dilacerado por acontecimentos terríveis, neste caso, o suicídio de sua filha Mazy, de 24 anos, em 2019. Tricky também viu sua mãe suicidar-se quando era uma criança, ou seja, há razões para toda essa figura sinistra ter emergido.
Seu primeiro álbum desde então, “Fall To Pieces” traz esta nova pincelada de tons escuros em sua já sinistra palheta e o resultado é um de seus trabalhos mais sombrios desde a estreia, justo com “Maxinquaye”, em 1995. Ao contrário do que se espera, as onze canções presentes aqui são curtas, totalizando menos de meia hora. Algumas quase soam como esboços, mas todas, das mais simples às mais complexas, carregam a mágoa, o rancor e a tristeza/fúria de Tricky. Ele se mantém como produtor das faixas, mas, de vez em quando, surge aquela voz ameaçadora aqui e ali, dando conta de que nada do que ouvimos lhe escapou, que tudo por aqui existe exatamente do jeito que ele pensou e que tal movimento – de pensar e produzir – foi minuciosamente levado a cabo. Mesmo na sublimação de sua tristeza, algo que o mesmo disse “ter afetado sua saúde mental”, Tricky não abre mão desse perfeccionismo técnico, capaz de traduzir sua alma. E isso é perturbador na concisão que “Fall To Pieces” apresenta.
Tricky, mesmo combalido e vulnerável, não abre mão de suas musas vocais. Aqui elas servem como mediadoras destes sentimentos, a saber, Marta Złakowska e Oh Land, que dão conta do recado, sendo que Zlakowska surge como a grande voz do álbum. Mas as duas participações da dinamarquesa Oh Land são belos: a melancólica “Running Off” e a assombrada “In The Doorway”. Há momentos realmente tristes por aqui, sendo “Hate This Pain” o exato cair da gota que provoca o tsunami final. Com letra simples, acompanhado por pianos, cellos e samples, Tricky só fala “I hate this fucking pain, Was crying, endless coast, Baby girl, she knew me most/ I hate this fucking pain, I miss my baby while I fly, In my head, I want to die”. E o instrumental escasso, o piano martelando a mesma nota, tudo passa a sensação de inevitabilidade, de tensão acumulada, de caos prestes a acontecer. Certamente a capacidade de converter dor pessoal em uma obra tão pungente é algo a ser admirado profundamente.
Não dá pra encontrar canções “animadas” por aqui, mas não se pode dizer que haja um único momento de placidez ou calma ao longo do disco. “Chills Me To The Bone”, por exemplo, é um exemplo de belezura minimalista que surge do meio do caos. “Fall Please”, diretamente em seguida, tem uma batida dançante que a faz soar como um rascunho de canção, cumprindo o papel de fazer a mente sair rodopiando em ambientes um tanto mais leves e arejados. Há ecos de batidas trip hop em “Take Me Shopping”, embebida por uma guitarra subterrânea e a iminência de algo que não chega a acontecer, muito por conta da voz sussurrada de Tricky em algum ponto do espectro sonoro. Ele volta a povoar sonhos perturbadores em “Like A Stone”, contrastando com a pureza vocal de Marta, que, por sua vez, alcança seus momentos mais estranhos em “Throws Me Around”. O fim chega com “Vietnam”, uma entorpecida peça de dois minutos e meio, com acordes desencarnados de guitarra e apenas o jogo de vozes no fim do corredor. Medo.
“Fall To Pieces” é perturbador e deve ser lembrado como um dos trabalhos mais pessoais deste estranho ano de 2020. Sua digestão não é fácil e ele não é recomendado para todas as horas, porém, sua audição é reveladora, sinistra e bela.
Ouça primeiro: “Chills Me To The Bone”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.