“A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis, e o mal que mora em nós

 

 

 

A Companhia das Letras continuará nos dias 10,11, 17 e 20 a transmissão da nova edição do festival Na Janela, seu ciclo de lives, dessa vez abrangendo a ditadura.

 

Seu início aconteceu na segunda-feira passada, dia 03, com uma conversa entre os escritores Maria Valeria Rezende, Milton Hatoum e a historiadora e autora Wania Sant´Anna sobre o revoltante e doloroso tema Testemunhos, que Milton surpreendentemente relacionou com o conto “A igreja do diabo”, de Machado de Assis um de seus trechos:

 

“ Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a  exerce-la mediante retribuição, ou pecuniária , ou de outra espécie; nos casos porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa , e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a pagar a transpiração “

 

Há muito mais sobre nossos dias nas palavras Machadianas do que julga toda vã filosofia.

 

No conto, parte do livro “Histórias sem data”, publicado em 1884, o Diabo, sentindo-se humilhado com o papel que lhe cabia há séculos, resolve fundar uma Igreja que seria única, destruindo todas as outras religiões. Cínico, não poderia deixar de comunicar a Deus por lealdade, coisa que não enganou o Senhor, espantado com algumas conclusões levantadas pelo Tinhoso acerca dos homens :somos seres que se amparam nas Escrituras Sagradas para esconder nossos pecados e não cometemos atos de bondade que não seja para benefício próprio.

 

Quando o Diabo coloca sua ideia em prática apresenta-se  em sua real imagem para que os fiéis tenham dele  uma visão transformada, criador da Igreja onde as virtudes seriam naturais e legítimas :  gula, luxúria, avareza, ira, soberba, inveja e preguiça eram as qualidades mais preciosas, permitia-se vender seu caráter, moral e fé se assim fosse preciso. O amor ao próximo só era permitido se o próximo fosse a mulher alheia. Fora isso, que a ele fosse reservado desprezo e ódio e a adulação fosse reservada ao supremo líder.

 

Só faltou um decretinho para facilitar a posse das armas e umas páginas fomentadoras de fake news

 

Milton recordou o conto logo depois de sua fala sobre a compreensão a quem diz que sonha em sair do Brasil, angústia vivida por ele na época do golpe de 1964. Vivemos as consequências de um país às voltas com uma polarização política que beira o comportamento fanático esperado de uma multidão que segue um líder megalomaníaco

 

Como manter a esperança?

 

Certo do esforço dos seus fiéis em se manterem adeptos dos ensinamentos de sua Igreja, o Diabo se espanta em descobrir que no mundo todo as pessoas estavam praticando boas ações às escondidas: gulosos comendo menos, os avaros distribuindo ajuda, os trapaceadores se confessando. Com raiva pediu explicações a Deus, que lhe disse:

 

“- Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiverem franjas de algodão. Que queres tu? – É a eterna contradição humana “

 

Valendo-se de uma das boas ações que a literatura faz por nós Milton disse desejar confiar na nossa ambivalência como saída para destruirmos a Igreja do Diabo instalada no nosso país.

 

Como Freud já concluiu em seus escritos, para vivermos em sociedade temos que reprimir desejos destrutivos e quiçá assustadores, o que frequentemente nos coloca em conflitos internos, buscando satisfazer nossas vontades de uma maneira que nossa cultura aceite. Daí para a identificação com promessas milagrosas de moralidade, discursos de ataque aos símbolos de novos tempos e a normalização do ressentimento é um pulo.

 

Ou um voto.

 

Freud (novamente ele, presente nas entrelinhas de Machado) disse que quanto mais se evita pecar, mas queremos o pecado. E quando a possibilidade desse pecado se realiza, a satisfação permanente se esvai, nos envolvendo na eterna contradição humana de optarmos pelo dito correto, feito os arrebanhados pelo Diabo, tentados pelo preço baixo de pertencer ao seu reino, coisa não oferecida pela igreja de Deus.

 

Desejo a vocês os mesmos desejos de Milton: transgressão e coragem para se posicionar e a escolha pelo bem, sem demagogia (somos plurais, nos mostrou Machado).

 

A literatura brasileira está aí para nos ajudar nesse caminho.

 

Por isso para os diabolicamente reacionários ela é assustadora.

 

Referências :

 

Assis, Machado de. A Igreja do Diabo (1884/1994). In: Assis, Machado de. Histórias Sem Data (1884/1994). Obra Completa, de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. p 2-7. Vol. II. Disponível em: http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn004.pdf Acesso em: 05/04/2017.

 

Freud, Sigmund. (1912/2013). Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos homens primitivos e a dos neuróticos. (1ª ed.) São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras.

 

_____________. (1930/2011). O Mal-estar na Civilização. (1ª ed.) São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras

Debora Consíglio

Beatlemaniaca, viciada em canetas Stabillo e post-it é professora pra viver e escreve pra não enlouquecer. Desde pequena movida a livros,filmes e música,devota fiel da palavras. Se antes tinha vergonha das próprias ideias hoje não se limita,se espalha, se expressa.

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