99,17% de rejeição, 57 milhões na eleição

 

 

Eu estava trabalhando até tarde – pleonasmo em se tratando deste que vos escreve – quando fogos de artifício irromperam a tranquilidade noturna no aprazível recanto niteroiense de Santa Rosa. Copa do Mundo? Campeonato Brasileiro? Fim de ano? bolsonaro deposto? Carregamento da noite chegando na comunidade aqui perto? Demorei alguns minutos para sacar que era a eliminação da Karol Conká no bbb. Me dei conta porque várias vozes – masculinas e femininas dispararam:

 

– Vai se foder, Karol Conká!

 

– Vai tomar no cu, Karol Conká!

 

– Chupa, Karol Conká!!

 

E tome foguetório, tome vários berros de “uhuuuu” e tudo mais.

 

Pois bem.

 

Eu não vejo bbb e só fico sabendo das situações do programa porque preciso estar presente nas redes sociais boa parte do dia, por questões profissionais. Em muitas delas, especialmente no twitter, o programa global domina as ações. E, a partir disso, o desempenho da cantora e compositora paranaense é hegemônico dentro do assunto bbb e de seus personagens. Confesso que fiquei surpreso ao ver tal fato. Karol sempre me pareceu simpática, talentosa e inteligente. Houve tempo em que ela apresentou o “Superbonita”, atração do GNT. Houve participação dela no “Histórias com Porchat”, outro programa do GNT, no qual ela aparecia contando uma história bem engraçada de uma paquera que se transformou em uma situação de proveito profissional para o sujeito, enfim, algo leve, que parecia cravar que ela era legal.

 

Mas não.

 

Segundo o score do bbb, Karol foi eliminada com 99,17% dos votos da audiência. Houve gente pedindo voto para tirá-la da casa. Houve gente ponderando seriamente sobre a necessidade de sacá-la do programa. Segundo especialistas na atração global, este foi o maior índice de rejeição já registrado.

 

Curioso.

Dizem que Karol exacerbou todas as perspectivas de falta de convívio social. Mulher, progressista, negra e artista, ela parece ter decepcionado a todos, seja as pessoas que se enquadram nessas categorias, seja às outras. Muitos a chamaram de “cobra comcê” e outros termos, vários memes surgiram, enfim, fico pensando o que vai ser da vida de Karol quando ela voltar ao convívio social. Será que ela fez tudo isso com a intenção de chamar atenção para si, mesmo que da maneira “errada”? Será que ela não se deu conta? Será que terá alguma chance de tocar sua carreira artística depois do programa? Será que a globo irá recompensá-la de alguma forma pela audiência inédita que sua presença trouxe ao programa?

 

Sim, porque esta é a parte mais importante.

 

O quanto a globo e seus anunciantes lucraram com a presença de “gente tóxica” em sua atração televisiva? O quanto foi faturado para que as famílias brasileiras, de todos os espectros, se unissem para sacar uma participante?

 

A unanimidade da escolha de Karol para sair do bbb aponta uma pessoa que desagradou a todo mundo. Como isso é possível? Parece que o Brasil é um país de santos e santas. Que ninguém é péssimo socialmente, que ninguém tem preconceitos de todos os tipos, que trai suas origens, que esquece de onde veio e só pensa para onde vai.

 

Não duvido que Karol tenha merecido sua eliminação do programa, afinal, muita gente que conheço e respeito, estava indignada com sua conduta, muito pela decepção em ver que a cantora de “Tombei”, na verdade, não é a militante progressista que todos supunham. Que, na verdade, apesar de ser mulher, negra e artista, entre outras coisas, na verdade, é uma pessoa falha, com preconceitos, defeitos e tudo mais. Afinal de contas, numa sociedade doente, surgem pessoas doentes socialmente. Pleonasmo necessário.

 

É bom lembrar que o bbb é tudo, menos um reality show. Há muito em jogo – dinheiro prestígio, audiência – e uma emissora como a globo jamais colocaria no ar um programa em que não houvesse o total controle. Sendo assim, a revelação de que uma mulher negra, artista, na verdade, é uma escrota, a emissora acaba erodindo várias pautas em jogo atualmente na vida social. É uma desqualificação em várias instâncias.

 

Sem falar em muitas pessoas – talvez a maioria – que projetam suas vidas num programa de televisão. Que aproveitam a segurança da telinha para por em prática a retidão pessoal e coletiva que esquecem ao estacionar o carro na vaga do idoso no shopping. Ou se informar onde tem blitz da polícia para evitar, uma vez que tomou aquela cervejinha a mais antes de dirigir.

 

Confesso: entre Karol Conká e o atual presidente do país, fico com ela incondicionalmente e sigo desconfiando de uma sociedade que a elimina com quase 100% de votos mas que tem 57 milhões que olham para uma pessoa como bolsonaro e decidem que ele deve ser a pessoa certa para dar ao país um rumo melhor.

 

Seja qual alternativa for, estamos doentes. Muito doentes.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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