‘Badmotorfinger’: Quando o Silêncio não faz falta
Quem é fã de Twin Peaks talvez se lembre de uma pequena passagem clássica da fala do personagem Major Garland Briggs, interpretado por Don S. Davis. Na ficção, Garland Briggs é pai de Bobby Briggs, um dos principais personagens que faz parte do desenrolar misterioso sobre o assassinato de Laura Palmer.
Mas esse texto não é sobre a melhor série americana dos anos 90, nem mesmo sobre David Lynch. O caso é que em determinada passagem da trama, Garland Briggs, um personagem que tem como característica um comportamento retraído e calado, profere: “às vezes o silêncio é como ouro”.
Sabendo em que quase todas as civilizações o ouro é tido como um metal precioso e valioso, há que se perceber rapidamente que a frase de Briggs é categórica: ficar em silêncio é, muitas vezes, melhor do que falar qualquer coisa ou fazer qualquer barulho que tente demonstrar todas as nossas virtudes imbecis. Mas nesse ponto eu me lembro também da fala de Aldous Huxley, em ‘Music at Night’ (1931) quando diz “depois do silêncio, o que mais se aproxima de expressar o inexprimível é a música”.
Toda essa introdução marca o que eu senti ao revisitar um dos discos que me fizeram descobrir a música de maneira diferente, mais curiosa, mais interessante e que despertou em mim uma vazão para uma certa raiva que eu sentia mas nunca soube expressar.
E eu falo aqui de ‘Badmotorfinger’, o terceiro disco do Soundgarden que foi lançado naquele grande ano de 1991, onde outros tantos discos revolucionários, rebeldes e atrevidos também foram apresentados a esse mundo tão mundano – e poderia aqui citar desde o incansável “Nevermind” do Nirvana até o peculiar “Laughing Stock” do Talk Talk.
Movimentos, gêneros e cenas à parte, estamos falando de 1991. Mil novecentos e noventa e um. Às vezes penso que foi aquele ano uma espécie de grande catarse social-musical. Discos inteiros sendo ouvidos. A popularidade do CD. Além dos títulos já citados, tínhamos ‘Ten’ do Pearl Jam, ‘Blood Sugar Sex Magic’ do Red Hot Chilli Peppers’, ‘Out of Time’ do R.E.M., ‘Loveless’ do my bloody valentine, ‘Screamadelica’ do Primal Scream, o homônimo da super banda Temple of the Dog, ‘Bandwagonesque’ do Teenage Fanclub’, ‘Green Mind’ do Dinosaur Jr., Black Album do Metallica, ‘Blue Lines’ do Massive Attack e – apenas para antecipar o que aconteceria depois com a onda do britpop – ‘Leisure’ do Blur.
Dentre tantos títulos gigantescos de bandas que, ainda que pequenas à margem do mainstream ou simplesmente surfando no grande sucesso comercial, estava lá o terceiro disco do Soundgarden, uma banda sempre alocada naquela salada do grunge de Seattle mas que indo bem fundo era simplesmente a fórmula do rock’n’roll e do heavy metal misturada com uma gritaria bem feita por Chris Cornell, angústia, peso e, sim, um instrumental que faz com que não se sinta falta do silêncio.
O silêncio que pode ser confortante ou constrangedor, na execução de ‘Badmotorfinger’ é completamente desnecessário. E essa foi uma das primeiras constatações que eu percebi quando escutei novamente após tanto tempo um álbum que me abriu um mundo onde eu descobri um outro pedaço de mim mesma que estava à espera em algum lugar escuro, agitado e talvez até um pouco insalubre do meu coração.
Definitivamente um disco para a história antes mesmo que a história se criasse, ‘Badmotorfinger’ abre com um riff da canção “Rusty Cage” que desafiava os moldes de composição da banda e de até outras bandas que são tidas como suas contemporâneas. Isso porque a faixa de abertura é mais criativa, com passagens lentas e pesadas – não foi à toa que o disco foi nomeado para o Grammy de melhor atuação de Metal.
Foi na primavera de 1991 que Chris Cornell, Kim Thayil, Ben Shepherd e Matt Cameron começaram as gravações de ‘Badmotorfinger’, que seria lançado através da A&M Records. A banda havia decidido continuar com a sua sonoridade mais puxada ao heavy metal que já haviam fazendo, mas o terceiro disco apresenta uma veia artística mais forte, com afinações diversas, variações de tempo e uma preocupação lírica mais madura.
Os singles “Outshined” e “Rusty Cage” alcançaram público tanto nas rádios como na MTV e ‘Badmotorfinger’ se tornou o álbum de maior sucesso da banda na época, chegando à parada da Billboard 200 e obtendo a façanha de ser indicado ao Grammy de Melhor Performance de Metal.
É certo que o grupo não se deixou afastar da sua antiga sonoridade pesada nos discos anteriores, ‘Louder Than Love’ (1989) e ‘Ultramega OK’ (1988), mas foi o próprio Cornell que citou Shepherd como uma cabeça que traria uma nova abordagem mais criativa para as sessões de gravação, usando todo o seu conhecimento e suas habilidades que dali para frente redefiniram a sonoridade de uma banda que movimentou o cenário musical dos anos 90.
E assim foram as sessões na primavera de 1991 no Studio D em Sausalito (Califórnia), no Bear Creek Studios em Woodinville, (Washington) e A&M Studios em Los Angeles (Califórnia). A banda escolheu trabalhar novamente com Terry Date, produtor do seu disco anterior, mas contando agora com abordagens em estúdio muito mais colaborativas do que antes.
O resultado foi um álbum que alcançou um nível de coesão e intensidade praticamente perfeitos. Guitarras um pouco desafinadas, ritmos bastante pesados. Enquanto muitos os comparavam como mecânicos que tentavam replicar o Black Sabbath, o Led Zeppelin ou o Killing Joke, o Soundgarden estava pela primeira vez construindo uma ponte na sua carreira: a união do seu antigo público fã de metal com o mainstream do público de rádios universitárias.
Mas não nos enganemos, pois ‘Badmotorfinger’ realizou com perfeição o encargo que faze o Soundgarden essencial e insubstituível: e, sim, eu falo aqui dos rugidos incomparáveis de Chris Cornell que após a sua morte trágica eu não pude ouvir novamente sem me emocionar.
Curioso como as coisas são simples e, ao mesmo tempo, complexas. Na energia caótica que se percebe pela primeira ou segunda audição do disco não é perceptível a perfeita dança que fazem os integrantes: Matt Cameron é capaz de se comunicar, ainda que fora do padrão, com Cornell e Thayil, puxando-os de volta para o seu ritmo; Shepherd conversa facilmente com as guitarras de Thayil, respeitando excelentemente a sua própria composição em não servir simplesmente como um grave-arrastador de uma banda de metal.
E tudo nisso temos Chris Cornell, aquele dono de uma voz única e que provavelmente nem mesmo em aulas de canto conseguiria alcançar seu volume, sua intensidade e ferocidade ao cantar sobre temas desconfortáveis, mas que, ironicamente, nos trazem conforto.
Foram muitos os dias que escutei “Badmotorfinger” olhando para o mundo apático através de uma janela, andando pelos corredores de prédios frios e monótonos, esbarrando em pessoas que poderiam nos olhar com mais sensibilidade – mas elas simplesmente não se importam.
Em um mundo em que tudo se tornou desimportante, “Badmotorfinger” se consagra não só como aquele disco que Mark Arm do Mudhoney, uma vez brincando com Cornell, Shephed, Thayil e Cameron, que os fez se tornar uma coisa meio Rush (talvez por apresentar de vez em nunca uma certa erudição). ‘Badmotorfinger’ não foi só o álbum que colocou o Soundgarden sob os olhos do mundo inteiro. ‘Badmotorfinger’ não é apenas uma obra raivosa para um adolescente rebelde. É um disco que, antes de tudo, me fez não sentir falta do silêncio. Eu o escutei diversas e repetidas vezes me lembrando daquela primeira fala de Aldous Huxley e concluindo que após o silêncio, só a música mesmo irá nos salvar e nos confortar.
Maísa Mendes de Carvalho é piauiense com toques paulistas, advogada, criadora e apresentadora do Distorção Podcast, amante das artes humanas e apaixonada por música.