Portishead: Mais do que som ambiente

 

 

Em 1994, o trio britânico Portishead lançou seu álbum de estreia, Dummy. Sucesso de público e de crítica, alimentou as elucubrações que cunharam o termo “trip hop” para se referir ao Portishead e a outros sons de Bristol, sudoeste da Inglaterra, aí incluídos Massive Attack e Tricky.

Mais do que seus congêneres, no entanto, o Portishead foi consumido como ambient music. Música que orna uma atmosfera sofisticada… Ou então aquela música que fica de “fundo” enquanto fazemos outras coisas – ou para fazermos outras coisas. É difícil uma playlist das boas com “músicas para sexo” não ter alguma faixa de Dummy

 

 

“Música relaxante, yuppie e para transar”: em 2010, Geoff Barrow, o centro nervoso do Portishead, declarou que se irritava com essas associações. Ao contrário, completou ele, Dummy foi concebido para soar como algo “áspero, alternativo e barulhento”.

Este texto é um convite para mergulharmos nas águas densas de Dummy. Para irmos além de “Glory Box”, seu principal hit. Para não nos conformarmos com rótulos como trip hop…

 

 

Método

 

Uma coisa é certa: Dummy não foi o produto daquilo que conhecemos por “banda”. Suas origens estão na formação de Geoff Barrow, um pós-adolescente que se apaixonou pelo hip hop sorvido em festas como as que o DJ Andy Smith organizava em Portishead, cidade portuária nos arredores de Bristol.

 

Atraído pela efervescente cena musical de Bristol, Barrow descola um emprego no Coach House Studios, na mesma época em que a Massive Attack estava gravando seu álbum de estreia, Blue Lines, de 1991. No ano seguinte, Barrow já havia acumulado habilidades e reconhecimento para trabalhar em remixes, colaborar com Tricky e compor uma das faixas incluídas em Homebrew, segundo álbum de Neneh Cherry.

 

O produtor Cameron McVey, marido de Cherry, foi um grande incentivador de Barrow, garantindo as condições para que ele pudesse gravar muitas e muitas bases utilizando samplers e baterias eletrônicas. A essa altura, já começara uma caça por vocalistas. Nas várias tentativas, consolidou-se a parceria com Beth Gibbons.

 

Gibbons era sete anos mais velha que Barrow e trazia elementos diferentes para a música da dupla. Criada em uma fazenda, teve na folk music sua principal escola. Sua voz e seu estilo peculiar de cantar foram torneados em bares de Bristol. Ela se encarregou das letras das faixas que entrariam em Dummy.

 

Os trabalhos de gravação se concentraram no estúdio State of Art, recentemente montado com a ajuda de Dave McDonald, um engenheiro de som que, por conta suas contribuições, às vezes consta como o quarto integrante do Portishead. O terceiro é Adrian Utley, um já tarimbado guitarrista em formações de jazz, com habilidades em outros instrumentos e na produção musical. A chegada tardia de Utley explica sua ausência na composição de duas das 11 onze faixas de Dummy.

 

A conclusão do álbum ficou assegurada por um contrato com a Go! Beat, selo associado à Go! Discs Records. Em outubro de 1993, Tim Saul, integrante da Earthling, outro projeto ligado ao trip hop, junta-se aos demais no estúdio, contribuindo com ideias. Alguns músicos foram convidados como instrumentistas para a definição dos arranjos finais. O álbum é lançado em agosto de 1994, depois de uma gestação de 18 meses.

 

Antes de tratarmos das faixas de Dummy, vale insistir sobre sua composição. Nelas se misturam a utilização de recursos eletrônicos com o apreço por coisas antigas. Gravações de outras décadas, especialmente black music e trilhas sonoras de filmes, funcionavam como pistas na busca de breakbeats e atmosferas.

 

No estúdio, esse material podia ser diretamente sampleado, mas podia também inspirar performances instrumentais. Nesse último caso, as gravações eram transferidas para um vinil ou uma fita de rolo para serem processadas em novos registros. Em geral, a voz de Gibbons só era acrescentada depois de tudo isso, juntamente com outras instrumentações.

 

Portanto, a referência vinha das colagens do hip hop. Barrow e Utley maravilham-se ao falar do impacto de álbuns como It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back (1988), do Public Enemy, e The Low End Theory (1991), do A Tribe Called Quest. É impossível não notar a importância dos scratches em várias músicas de Dummy, especialidade de Barrow nas pick-ups.

 

Mas em cima dos loops gerados por técnicas do hip hop, o Portishead introduzia camadas de melodia, graças sobretudo às guitarras de Utley, e a voz marcante de Gibbons, aliás mixada para ter destaque. Não era algo original, pois desde o final dos anos 1980 propostas similares animavam, por exemplo, o Wild Bunch, soundsystem que daria origem ao Massive Attack. Mas o Portishead esmerou-se em produzir, nas palavras de McDonald, um “álbum hip hop com canções”.

 

Daí que não fosse complicado transformar a engenhosa estratigrafia de estúdio em música tocada por uma banda de palco. Com os aportes permanentes de John Baggott nos teclados, Clive Deamer na bateria e Jim Barr no baixo, músicos que participaram das gravações, o Portishead podia “cair na estrada”. E assim se fazia a alquimia de eletrônica experimental em quinteto com crooner feminina.

 

 

Resultado

 

A voz de Beth Gibbons está em todas as faixas de Dummy. Às vezes assertiva, às vezes desleixada. Às vezes sofrida, às vezes reconfortante. Sua performance em um palco, fumando, olhos cerrados, palavras entre os dentes, está entre as mais marcantes dos anos 90.

 

Seu estilo é comparado ao de Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Joni Mitchell… Ela também foi influenciada por música dos anos 80: Sinnead O’Connor, Sugarcubes, Cocteau Twins, U2… A própria Gibbons cita ainda Janis Joplin e Janis Ian.

 

“It Could Be Sweet” e “Roads” são as faixas dominadas pelo teclado Rhodes e seus tons macios, um dos fetiches do Portishead. “It’s a Fire” é mais uma faixa que destaca os teclados, nesse caso um Hammond, outro instrumento vintage, também muito usado em Dummy. Junto com o baixo, ele conduz “Numb”, de alta intensidade.

 

Em “Wandering Star”, a divisão entre bases e melodias é bem nítida, deixando a segunda quase que totalmente na dependência da voz de Gibbons. No início figura um sample de “Magic Mountain” (1970), de Eric Burdon and War. Muitos scratches.

 

“Strangers”, “Pedestal” e “Biscuit” são as faixas mais densas de Dummy. Essas não correm o risco de virar “ambient music”. A primeira sampleia “Elegant People” (1976), da Weather Report, e traz guitarras distorcidas que lembram o que Sergio Baptista fazia em algumas músicas dos Mutantes. “Biscuit”, por sua vez, sampleia “I’ll Never Fall in Love Again” (1959), de Johnnie Ray, integrando inclusive suas vozes em diálogo fantasmagórico com o que canta Gibbons.

 

Além dos instrumentos já mencionados, outros são fundamentais em algumas faixas. É o caso das cordas em “Roads” e do trumpete em “Pedestal”. Já em “Mysterons”, música que abre Dummy, o destaque é o teremim, cuja eletrônica rudimentar ficou associada com trilhas sonoras de ficção científica.

 

Aliás, o título da música vem de Captain Scarlet and the Mysterons, uma série de televisão infantil de ficção científica dos anos 1960, com manequins animados. Daí poderia ter surgido o título do álbum. Mas outra série dos anos 70 também se candidata, nesse caso expressando um outro sentido do termo “dummy”.

 

Em “Mysterons”, uma frase repetida fica ecoando em nossos ouvidos: “Did you really want?” É difícil ter certeza sobre o que se trata, algo característico das letras do álbum. Na leitura do escritor R.J. Wheaton, que publicou um livro inteiro sobre Dummy, as composições de Gibbons são impressionistas, elípticas, cujos fragmentos podem significar coisas diferentes para cada pessoa.

 

Apesar disso, um tema recorrente é a solidão, como em “Numb”: “And this loneliness / It just won’t leave me alone”. Outro é a incomunicabilidade, como em “Strangers”: “Did you realize no one can see inside your view?”. Em chave complementar, como nota Wheaton, afirmam a autonomia individual frente ao mundo.

 

Uma das letras mais debatidas por fãs e críticos é a de “Glory Box”. Enquanto se discute até hoje se a mensagem seria pré ou pós-feminista, Gibbons, em rara declaração, apontou que a parte a destacar estaria aqui: “Move over and give us some room”.

 

Não apenas a letra é importante em “Glory Box”. Nela os samples têm papel essencial. Com exceção do refrão, a canção se sustenta sobre as cordas e o baixo de “Ike’s Rap II” (1971), de Isaac Hayes – também a base para “Hell is Around the Corner”, de Tricky, e em duas faixas de Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs.

 

No trecho em que “Glory Box” muda o andamento, se confiamos na indicação do site WhoSample, o breakbeat vem da versão de “Hey Jude” (1970) produzida por Clarence Wheeler and The Enforcers. Outro sample não creditado é a voz de Ray Charles em um breve trecho de “Numb”.

 

Tudo certo, pois estamos na lógica do hip hop, na qual criatividade não depende de originalidade. A coisa se repete em “Sour Times”, que, assim como “Glory Box”, depende essencialmente de seu sample. Nesse caso, ele é retirado da trilha sonora de Mission: Impossible – mais especificamente, a faixa “Danube Incident” (1968), de Lalo Schifrin.

 

Os singles com “Numb” e “Sour Times” foram lançados pouco antes de Dummy. Acompanhando o segundo estava o tema do curta-metragem To Kill a Dead Man. Filmada em tons retrô, a trama com um matador de aluguel tem como protagonistas os integrantes do Portishead.

 

A produção rendeu ainda o vídeo de “Sour Times” e fotografias para a capa de Dummy e dos singles, que incluíram “Glory Box” em 1995. Na capa do álbum também figura um still do curta-metragem, no qual Gibbons atua como uma falsa viúva – assista para entender…

 

Aliás, desde o ano de seu lançamento, músicas do Portishead foram utilizados nas trilhas sonoras de filmes – e não foram poucas. Assim, o ciclo se fechava: fonte fundamental de inspiração, o cinema passou a se alimentar do trabalho do trio.

 

1995 foi um ano importante para o Portishead. De abril a junho, fizeram shows pelos EUA e Europa, culminando com uma apresentação no Glastonbury Festival. Logo depois Dummy foi apontado como vencedor do Mercury Prize, batendo álbuns como Definitely Maybe, da Oasis.

 

O prêmio não deixou de ser algo surpreendente considerando que o trio não tinha o sucesso como uma meta e raramente concedia entrevistas. A publicidade foi um tanto disfarçada, com a distribuição de cartões com apenas um “P”, que acabou se tornando a marca registrada do Portishead, a ponto de figurar na capa do segundo álbum.

 

Lançado em 1997, esse segundo álbum mostrou os novos resultados dos métodos seguidos pelo trio e seus colaboradores. Sem uma “Gloria Box” ou uma “Sour Times” para se destacar entre as demais as faixas, mostrou com mais inteireza a sonoridade do Portishead.

 

Um novo álbum de estúdio viria apenas em 2008. Paralelamente, os três integrantes vêm desenvolvendo trabalhos solos – em 2024 Beth Gibbons lançou seu último álbum – ou em outras parcerias – é o caso de Geofrey Barrow nas suas várias colaborações com Ben Salisbury em trilhas sonoras.

 

 

Trip Hop

 

Assim como Tricky, o Portishead recusou o rótulo trip hop para caracterizar seu trabalho. Isso não impediu que os “sons de Bristol” tivessem enorme influência. Suas marcas estão na produção de muitos artistas até o presente.

 

Aceitemos ou não o rótulo, o importante é não deixar de reconhecer as diferenças entre os nomes que estão associados ao trip hop. Vejamos o caso da Massive Attack e de Tricky, cujas colaborações com o Portishead são recorrentes. Eles tinham inclusive a mesma empresária.

 

A Massive Attack também lançou um álbum em 1994, Protection. Ele não teve tanto impacto quanto a estreia com Blue Lines, mas deu continuidade às trilhas lá iniciadas. A Massive Attack mantinha um leque mais aberto em suas bases e, nos vocais, oscilava entre o rap e o canto.

 

Tricky desligou-se da Massive Attack e estreou em 1995 com Maxinquaye. Mantinha-se como rapper, mas contracenava com a voz de Martina Topley-Bird. Sua sonoridade era mais coesa e claustrofóbica, com maior ênfase na percussão.

 

Já o Portishead tinha um pé fincado no passado. Usando às vezes as mesmas referências que inspiravam a Massive Attack, cultivava um apreço especial por “sons antigos”, entrecortados ou misturados a batidas eletrônicas e scratches.

 

Outros diferenciais eram a voz onipresente de Gibbons, tirando de cena o rap, e a guitarra de Utley. Embora o jazz fosse sua âncora principal, Hendrix e Black Sabbath também faziam parte da formação de Utley. No segundo álbum, a surf music vai mostrar mais fortemente sua influência, ao lado das trilhas de western.

 

Em Dummy, essa guitarra, quando aparece em seis das 11 faixas, não pode ser ignorada. O que seria de “Glory Box” sem ela? Uma das versões de “Sour Times” incluída no single é bem roqueira, geralmente a escolhida para ser apresentada nos shows da, aí sim, banda.

 

Em se tratando de shows, obrigatória é a escuta de Roseland NYC Live, lançado em 1998, com um repertório que cobre os dois primeiros álbuns. “Strangers” e “Mysterons” ganham versões que valorizam ainda mais suas proezas. Deleitem-se também com o vídeo.

 

Nota: na lista de artistas influenciados pelo Portishead, dificilmente vamos encontrar a Devics. Talvez porque as semelhanças não são óbvias, nem diretas. A Devics tem personalidade própria. Destaque para a voz da Sara Lov. Confiram The Stars at Saint Andrea (2003), o penúltimo álbum.

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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