Dois ótimos – e urgentes – discos de rock de 2024
Enumclaw – Home In Another Life
34′, 11 faixas
(Run For Cover)
Wunderhorse – Midas
40′, 12 faixas
(Communion)
Há alguns meses nós resenhamos aqui na Célula Pop o novo disco dos americanos DIIV, “Frog In Boiling Water” (leia aqui) e fomos agradavelmente surpreendidos por um disco de rock totalmente inserido no nosso tempo atual, com zero nostalgia, zero imitações de modelos anteriores e composto por canções fortes e indicativas da dificuldade de assimilar um cotidiano que passa em alta velocidade diante dos nossos olhos e que escorre por nossas mãos. Agora vamos falar de outros dois ótimos álbuns, feitos por duas bandas jovens, contemporâneas e inseridas no mesmo contexto. A gente sabe que os tempos atuais não privilegiam o sucesso de grupos de rock, pelo menos, não do jeito que era antigamente. Uma olhada nos artistas de hoje que ascendem ao status global revelará que temos gente do pop, do rap e até da eletrônica, mas, quando a área de atuação é o rock, tudo parece mais difícil. Não estamos ignorando o potencial de gente como Foo Fighters, Coldplay ou o redivivo Oasis de encher estádios, pelo contrário. Estamos falando de gente que surgiu agora, há poucos anos e em como suas propostas passam por um modelo de rock que não precisa – e nem parece querer – de grandes espaços para existir, pelo contrário. Sendo assim, vamos conhecer um pouco dos ingleses do Wunderhorse e dos americanos do Enumclaw, que estão lançando, respectivamente, os ótimos “Midas” e “Home In Another Life”.
Enumclaw é o nome de uma cidadezinha na periferia de Tacoma, no estado americano de Washington. Você sabe: é a mesma região na qual está Seattle, ponto de origem de várias bandas e artistas que deram forma ao rock alternativo guitarreiro americano mais pesado. No meio daquele noroeste frio e chuvoso, o quarteto que tem o mesmo nome da cidade, iniciou suas atividades em 2019, em meio à pandemia da covid-19. Lançaram um single chamado “Fast’N’All”, que logo foi divulgado nas emissoras de rádio locais e os levou a iniciar uma sequência de shows em casas noturnas minúsculas, também da região. Logo chamaram a atenção de publicações especializadas e da rádio KEXP-FM, que começou a tocar a canção. Vendo o burburinho acontecer, o grupo – formado por Eli Edwards, Nathan Cornell, Ladaniel Simpson e o carismático vocalista e compositor Aramis Johnson – lançou o primeiro EP, “Jimbo Demo”, em 2021 e, alguns meses depois, o primeiro álbum, “Save The Baby”. O som dos sujeitos mistura rock alternativo de guitarras com acentos grunge, sem perder de vista a acessibilidade e tem nos timbres o grande elemento que potencializa os vocais de Aramis.
Com o lançamento do ótimo “Home In Another Life”, o Enumclaw refinou ainda mais essa sonoridade, saindo-se muito bem. O uso das guitarras em meio ao entrosamento de baixo e bateria aponta diretamente para algo que o Dinosaur Jr já fazia antes de se tornar famoso, lá no início dos anos 1990. É um som mais sujo e pesado, porém muito harmonioso e melódico, encapsulado em canções que duram entre dois e três minutos. Essa duração curta das faixas deixam uma sensação de urgência e intensidade, algo que pode ser constatado, por exemplo, em “Spots”, que tem uma levada quase pós-punk oitentista, pontuada por guitarras mais pesadas, que acaba explodindo antes de completar três minutos. Aramis é um letrista caótico e interessante, com suas canções ostentando títulos que podem ser “I Still Feel Bad About Masturbation” e “I’m Scared I’ll End Up All Alone”, mostrando a extensão do espectro de temas e assuntos e como eles se entrecruzam num horizonte de pouca esperança. O single “Change” é um exemplo de como este caos pode soar controlado e a favor da banda, mostrando como é possível a coexistência com um elemento de acessibilidade, que torna tudo mais ou menos aprazível para o ouvinte curioso de rock. “Home In Another Life” é um disco confessional e atormentado, que mostra a perplexidade de testemunhar a rapidez das coisas e constatar a nossa pouca ou nenhuma capacidade de reverter isso. Ou mesmo vontade.
O Wunderhorse começou as atividades durante a pandemia da covid-19. Inicialmente era um projeto solo do vocalista e guitarrista Jacob Slater e logo evoluiu para uma banda completa. Começaram com o pé direito em 2022, lançando o álbum “Cub”, que caiu nas graças da imprensa especializada e o saudou como uma mistura de garage rock, blues e grunge. Os temas das canções abrangiam mais ou menos as mesmas impressões do Enumclaw, mas com um acento mais punk. Isso significa canções sobre amores precoces, uso de drogas, desilusão e perplexidade diante de tudo e todos. O sucesso de “Cub” fez com que a banda excursionasse e abrisse shows para gente como Fontaines DC, Pixies e Foals, aumentando ainda mais a quilometragem. A chegada do novíssimo álbum, “Midas”, mostrou que o grupo está em plena evolução. Com uma sonoridade mais polida e pesada, o Wunderhorse incorporou mais tensão e urgência em seu universo sonoro, com Slater se saindo muito bem no papel de vocalista americano-sem-ser. Uma audição de “Arizona”, ótima quinta faixa de “Midas”, vai revelar o motivo, com uma citação quase explícita a “Smells Like Teen Spirit”, colocada como se fosse ao acaso.
Além disso, em meio a guitarras muito bem versadas no anda-e-para típico do grunge e no esporro-silêncio de gente como Pixies, o Wunderhorse conseguiu melhorar o que já fazia de bom. A tensão e a sensação de ruptura com tudo e todos é latente em vários momentos e pode assumir tons explosivos ou letárgicos, como é, por exemplo, “Superman”, que explode lentamente ao longo de cinco minutos de duração, em que uma versão alternativa do Alice In Chains parece tomar de assalto a identidade da banda. Em “July”, em meio à chegada do verão e dos dias mais azuis, o Wunderhorse começa construindo um clima de tensão e expectativa com guitarras que parecem se arrastar em algum subterrâneo – “estou em chamas, estou sem oxigênio”, brada Slater antes do ataque guitarreiro iniciar, novamente evocando o andamento mamútico do Alice In Chains. A faixa-título é um dos raros momentos em que as coisas parecem mais claras e ritmadas, mas o melhor possível do Wunderhorse está em canções mais lentas e mamúticas, como “Cathedrals” ou “Aeroplane”.
Tanto Enumclaw quanto Wunderhorse são bandas de agora. Mal têm cinco anos de existência e ainda estão lidando com o impacto da visibilidade, enfrentando, cada uma a seu jeito, o desafio do segundo disco. Em ambos os casos, temos honestidade total, coração aberto e uma franqueza que só os mais sofridos parecem ter. Talvez seja só mis-en-scene, talvez seja puro talento, mas esses dois discos apontam para futuros bem consistentes. Conheçam. E passem adiante!
Ouça primeiro:
Enumclaw: “Change”, “I’m Scared I’ll End Up All Alone”, “Grocery Store”
Wunderhorse: “Arizona”, “Silver”, “July”, “Midas”
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.