O discaço de Charly Garcia em 1987

 

 

Dia desses o modo aleatório do meu streaming me trouxe volta a beleza perfeita de “Pasajera en Trance”, pérola absoluta de Charly Garcia. Gravada em 1986, ela faz parte do EP “Tango”, que Garcia gravou com presença do superbaixista Pedro Aznar e se tornou a primeira canção do mestre do rock portenho a ser conhecida por mim, ainda no fim dos anos 1980. Ainda lembro que a ouvi no rádio enquanto fazia alguma atividade mecância no meu primeiro emprego, na Agência Copacabana da Caixa Econômica Federal. A melodia veio pelo alto-falante, quase toda instrumental e me resgatou daquele marasmo. Felizmente, consegui ouvir os autores da canção e seu nome, algo que nem sempre acontecia naquele tempo, especialmente em algumas emissoras de rádio FM. Não foi nada fácil achar “Pasajera en Trance” novamente, algo que só aconteceu quando adquiri o “Unplugged MTV”, de Charly Garcia, em 1996. E, sempre bom lembrar: o nome de Charly surgiu pela primeira vez pelas mãos dos Paralamas do Sucesso, que desbravaram o mercado do Cone Sul a partir de 1986/87. Tudo isso vem interligado quando o assunto é o belíssimo álbum que Garcia lançou em 1987: “Parte de la Religion”.

 

Quando o álbum foi lançado pela CBS/Sony, inclusive no Brasil – algo raro para a época – ficou evidente o nível de colaboração que Charly e os Paralamas haviam desenvolvido. Uma faixa, “Rap de las Hormigas”, conta com a participação integral do trio carioca e outra faixa, “Buscando un Símbolo de Paz”, tem os vocais de Paula Toller e as percussões de Chacal em todo o álbum. Aliás, é bom dizer que “Parte de la Religion”, quarto álbum solo de Charly Garcia, recebeu um orçamento generoso da gravadora. Com gravações em Buenos Aires, Rio e Nova York, houve tempo suficiente para burilar todas as sonoridades possíveis para aquele ano de 1987. Isso significava ter à disposição a tecnologia máxima para gravar e para produzir sons, especialmente com sintetizadores, sequenciadores e samplers. Charly já havia aberto o caminho para uma modernização estética na música pop argentina três anos antes, quando lançou o álbum “Clics Modernos”, gravado também em Nova York, com uso do máximo possível de teclados e ideias novas. Ainda que essas sonoridades estejam datadas hoje, elas ainda trazem alguma centelha de modernidade, de desejo de desbravar terrenos e definir novos parâmetros.

 

Charly já tinha quinze anos de carreira quando gravou “Parte de la Religion”. Fizera parte de grupos como Sui Generis, Porsuigieco, La Máquina de Hacer Pajaros” e “Serú Girán”, morara no Brasil por um ano durante os anos 1970 e vivia com uma brasileira, Marisa Pederneiras, que tinha o singelo apelido de Zoca. Sua carreira solo começara em 1982 e, até então, ele totalizava treze discos na carreira, sozinho ou acompanhado, ou seja, era um gigante do rock. Ele chegou a vir ao Brasil para apresentar o álbum no Morro da Urca, num concorrido show, que tinha na plateia gente como Ritchie e Renato Russo, que assistiram, perplexos, ao espetáculo. Além de tocar a íntegra de “Parte de la Religion”, Charly presenteou a plateia com o repertório de seus outros três álbuns solo – “Pubis Angelical” (1982), Clics Modernos (1983) e “Piano Bar” (1984), além de canções do EP “Tango”, de 1986 e sucessos dos grupos que integrou. Credenciais apresentadas para um país que deixara há muito de ouvir o que seus vizinhos geográficos produziam.

 

E o que tem “Parte de la Religion” para ser tão legal? Em primeiro lugar, o momento que Charly – sujeito intenso e oscilante – atravessava. Em pleno controle de sua criatividade, produzindo muito em casa (todo o álbum conta com ele em todos os instrumentos, salvo uma ou outra exceção, como a dos Paralamas, por exemplo) e totalmente sintonizado com o que era produzido no exterior. Deste trabalho vieram muitos sucessos que se tornaram emblemáticos de sua carreira. Vários singles foram lançados, como “Rap de las Hormigas”, No Voy en Tren e “La Ruta del Tentempié”, esta última, a canção que encerra o disco. A faixa “Rezo por vos”, veio de um projeto conjunto com Luis Alberto Spinetta, que terminou cancelado. A bela “Buscando un Símbolo de Paz” também é um dos destaques do álbum, sem falar na cortante “El Karma de Vivir al Sur”, feita em homenagem ao filho de Charly, Miguel. A sonoridade que Garcia extraiu de seus aparelhos e músicos é moderna para a época, mostra um músico com desejo de ousar e modernizar tradições. Certamente contribuiu também a ida até Nova York, quando entrou em cena o produtor Joe Blaney, que já havia participado de álbuns de gente como The Clash, Ramones e memso Prince. Blaney abriu as portas de dois estúdios na Grande Maçã – Chung King House Of Metal e o lendário Electric Lady. No primeiro, Charly esbarrou várias vezes com integrantes de Run-DMC e Beastie Boys. Foi em uma igreja ortodoxa russa em Nova York que as fotos da capa e do encarte foram registradas.

 

“Parte de la Religion” está disponível nos streamings. É um trabalho que mostra um músico no topo da forma, que merece audição urgente. A produção de Charly e de Blaney é totalmente sintonizada com o que há de mais bacana daquele tempo e dá pra ver como o músico argentino tinha maturidade e conhecimento de sobra para avançar na carreira. Ouçam e entendam como o rock latino daquele tempo funcionava. Aproveite o embalo e vá conhecer as obras de Luis Alberto Spinetta, Gustavo Ceratti (e seu grupo, Soda Stereo) e Fito Paez. Pelo menos.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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