Marisa Monte e as cores do Brasil
Marisa Monte tornou-se recentemente doutora honoris causa pela Universidade de São Paulo (USP), o que nos deu a oportunidade de apreciar sua longa trajetória como artista. Um ponto alto dessa trajetória é seu terceiro álbum, Verde, Anil, Amarelo, Cor de Rosa e Carvão, lançado em julho de 1994.
A artista teve um início de carreira pouco comum. Antes do álbum MM, de 1989, vieram o show e um especial para televisão. Apadrinhada e assessorada por Nelsinho Motta, tornou-se rapidamente um “case de sucesso”. E não apenas entre o público brasileiro, pois seus shows desde cedo cumpriram agenda no exterior.
Nascida em uma família da elite carioca, Marisa cresceu ouvindo MPB, aprendeu a tocar piano e bateria, não passou ilesa à avalanche do rock dos anos 80 e iniciou uma formação como cantora lírica. O resultado foram talentos vocais e melódicos invejáveis.
A sequência veio com Mais, de 1992. Enquanto o primeiro álbum era totalmente de versões, o segundo trazia oito faixas inéditas num total de 12 músicas. Marisa assina cinco delas, mas apenas em uma está desacompanhada como compositora. Inicia aí algo que marcará toda sua trajetória: o trabalho em parceria.
Em Mais, as principais parcerias são os titânicos Arnaldo Antunes e Nando Reis. Isso do lado brasileiro. Parte do álbum é gravado em Nova York, terra do produtor Arto Lindsay, que arregimentou várias colaborações, como o pianista Ryuichi Sakamoto e o tecladista Bernie Worrell.
Em Rosa e Carvão, a coalizão EUA-Brasil se repete. As faixas são gravadas em estúdios no Rio de Janeiro e Nova York, durante dois meses entre março e maio de 1994. Lindsay está novamente na produção, dessa vez dividida com Marisa, que elaborara as versões iniciais das faixas em um gravador caseiro de quatro canais.
Lindsay envolveu muita gente gringa nos ensaios e nas gravações. Worrell volta a comparecer em duas faixas. As novidades são as participações requintadas de Laurie Anderson (vocal em inglês em uma faixa) e de Phillip Glass (como arranjador de metal e cordas de outra). O brasileiro radicado nos EUA, Naná Vasconcelos, também convidado em Mais, contribui em uma música.
Arnaldo e Nando marcam novamente presença nas composições. Três letras são de Arnaldo, duas em parceria com Marisa (“De Mais Ninguém” e “Bem Leve”). Já Nando se destaca ainda mais, ao participar como instrumentista em seis das 13 músicas do álbum. Ele é ainda o compositor de outras quatro letras, duas com a participação de Marisa (“O Céu” e “Enquanto Isso”) e outra em colaboração com Carlinhos Brown (“Na Estrada”). “Ao Meu Redor” é sua participação solo.
Brown contribui com outras duas letras (“Maria de Verdade” e “Segue o Seco”) e foi fundamental, assim como Nando, como arranjador e percussionista em várias músicas. Em Barulhinho Bom (1996), o quarto álbum de Marisa, sua presença será ainda maior. Ele assina três das quatro faixas inéditas que compõem a parte do álbum gravada em estúdio. O restante é de registros de shows da turnê de Rosa e Carvão.
Brown era então um artista em ascensão. Instrumentista versátil e criativo, foi figura importante na formação da axé music nos anos 80. A criação da Timbalada lhe deu maior projeção. O acesso ao Olimpo da MPB aconteceu com sua presença em O Estrangeiro (1989), de Caetano Veloso.
Ao menos mais dois nomes precisam ser citados nas parcerias que possibilitaram Rosa e Carvão. Primeiro, Gilberto Gil, de quem Marisa se aproximou por conta de um show na Alemanha em 1993. Gil toca em quatro faixas e ainda “emprestou” sua banda – Jorginho Gomes, Arthur Maia, Marcos Suzano e Celso Fonseca – para várias participações.
Por fim, outro nome ilustre: Paulinho da Viola. Em 1993, o sambista convidou Marisa para colaborar em seus shows. A partir disso, a cantora passou a frequentar saraus no Rio de Janeiro, quando teve a oportunidade de conhecer os choristas do Época de Ouro, que participam em “De Mais Ninguém”. Mas a conexão com Paulinho é mais antiga e tem a ver com a Portela, o que garantiu, em uma faixa de Rosa e Carvão, os instrumentistas para apoiar as vozes de Marisa e das pastoras da famosa escola de samba – elas já haviam colaborado em “Ensaboa” do álbum Mais.
A Velha Guarda da Portela defende “Esta Melodia” (1959), de Jamelão, uma das cinco versões de composições anteriores em Rosa e Carvão. As outras quatro são: “Dança da Solidão” (1972), de Paulinho da Viola; “Balança Pema” (1963), do repertório do primeiro álbum de Jorge Ben; “Alta Noite” (1992), que já aparecera em dueto na estreia solo de Arnaldo Antunes; e “Pale Blue Eyes” (1968), de Lou Reed, incluída em um álbum da Velvet Underground.
Como se percebe, o terceiro álbum de Marisa Monte faz conjugações em vários planos: versões e músicas novas; diferentes gerações de compositores; instrumentistas associados a gêneros bastante distintos. Partindo dessa constatação, vem a questão que me interessa (e que sou capaz de) desenvolver: e o rock, onde fica nisso tudo?
1994 é um ano fabuloso para o rock no Brasil. É verdade, o quadro não era o mesmo dos anos 80, quando o gênero se tornou o principal na cena pop nacional. Mas era mais promissor do que o começo da década, por conta de revelações que conseguiam combinar guitarras e “raízes brasileiras”.
Do lado de Marisa, como já foi mencionado, o rock deixou marcas em sua formação musical, que aparecem nas versões de músicas dos Titãs e dos Mutantes no álbum de estreia. “Volte para o seu Lar” e “Tudo pela Metade”, de Mais, são outras evidências.
No entanto, em Rosa e Carvão, o jogo muda. Mesmo que persistam as colaborações de Arnaldo e Nando, o que deles aparece no álbum de Marisa tem pouco a ver com rock. Na verdade, tem mais a ver com buscas que vão em outras direções.
Vejamos as participações de Arnaldo: “Alta Noite” é uma bossa nova, mais rebuscada na versão de Marisa. “Bem Leve” é um quase um baião com palavras que são pura poesia. Em “De Mais Ninguém”, a letra do ex-titã soa como samba antigo com os instrumentos do Época de Ouro.
No caso de Nando, o trabalho com Marisa retomava o caminho aberto com as colaborações registradas em Mais. Em Rosa e Carvão, a trilha é aprofundada em sintonia com o que Nando apresenta em seu álbum de estreia, em tudo muito diferente do que os Titãs haviam feito em Titanomaquia (1993). Detalhe importante: em 12 de Janeiro (1995), os músicos são os mesmos que acompanhavam Marisa em sua turnê.
O mesmo se pode dizer da colaboração de Marisa com Renato Russo, que resultou em “Celeste”, um dueto que foi cogitado para ser incluído em Rosa e Carvão. A música tem muito mais a ver com o estilo do primeiro álbum solo de Renato (The Stonewall Celebration Concert, 1994) do que com o trabalho da Legião (embora ela tenha sido registrada com modificações em A Tempestade, 1996).
O contraponto com outro álbum de 1994 ajuda no meu argumento. Refiro-me ao terceiro álbum de Cassia Eller, esse sim, por conta dos arranjos, mais próximo do rock. Aliás, nele estava uma composição de Renato Russo (“1º de Julho”) e outra de Carlinhos Brown, Nando Reis e Marisa Monte (“E.C.T.”), criada nos mesmos encontros de que resultou “Na Estrada”.
Esse contraponto com Cassia Eller não deve nos fazer esquecer que ambas tiveram suas carreiras iniciais associadas ao indesejável rótulo de “cantoras ecléticas” – algo de que ambas escaparam. No caso de Cassia, por ter trilhado uma direção que deve bastante à aproximação com Nando Reis, outro ponto em comum com Marisa Monte.
Marisa não deixou de acenar para o rock. Nos shows da turnê de Rosa e Carvão, incluiu versões para “Panis et Circenses”, dos Mutantes, e para “Give me Love”, de George Harrison, esta com citações a Janis Joplin e Lenny Kravitz. E regravou, para Barulhinho Bom, “Cérebro Eletrônico”, de Gil, e “Tempos Modernos”, de Lulu Santos.
Ok, mas em Rosa e Carvão, Marisa passa longe do rock. O que escutamos ali, regado pelo bom gosto que se tornara marca registrada da artista, é uma sonoridade que ora recupera, ora atualiza uma paleta musical que conjuga Rio e Bahia. Paulistas e gringos presentes no álbum são, no bom sentido, devorados por esse tributo à MPB.
Assim ela apresentou a sonoridade de Rosa e Carvão “[Foi] tudo em cima de instrumentos mais brasileiros. Violão, percussão, voz. Não tem um teclado, não tem um sintetizador, não tem uma guitarra. Os outros tinham”. Não é totalmente verdade, mas como declaração revela a proposta que motivava Marisa naquele momento.
Há mais: a brasilidade, essa que a MPB formulou e cultivou, ocupa um lugar conceitual em Rosa e Carvão. Isso se revela em “Seo Zé”, composição com Nando e Brown, que este incluiu em seu álbum de estreia (Alfagamabetizado, 1996) e estava nos shows de Marisa. Sua letra: “O Brasil não é só verde, anil e amarelo / O Brasil também é cor-de-rosa e carvão”. Daí saiu o título do álbum, traduzido no desenho do rosto da cantora que está na capa.
Além de ser uma provocação bem atual para aqueles que não ousam refletir sobre a bandeira nacional, essa busca pela brasilidade em sua real diversidade tem sua principal expressão em “Segue o Seco”, composição de Brown que ele insistiu para ser gravada por uma artista de maior projeção à época. O motivo: chamar atenção para os flagelos da seca no Nordeste, que se arrastavam por oito anos.
O videoclipe dessa faixa foi o mais caro produzido até então no Brasil. Em cenário e com atores que visavam transmitir a aridez do sertão, Marisa desponta como um anjo a anunciar uma bem-vinda chuva. Havia uma sintonia com agendas da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida. Sob a letra intrincada de Brown, uma sonoridade que atualizava a MPB de raiz nordestina.
Nos shows da turnê, em combinação com a proposta mais geral de Rosa e Carvão, a percussão era elemento de destaque, acompanhada pelo acordeão do cearense Waldonys. Ao fundo, eram projetados trechos de clássicos do cinema brasileiro e cenas dos dribles de Mané Garrincha.
Vários músicos na banda da turnê eram baianos. Seu repertório passou a incluir “A Menina Dança”, música de 1972 dos Novos Baianos. O DVD Barulhinho Bom mostra a reunião da turma para o encontro com Marisa, o que os animou para a gravação de um show (Infinito Circular, 1997). “Chuva no Brejo” ganhou uma versão no álbum que sucedeu a Rosa e Carvão.
Na edição de junho de 1995 da revista Bizz, que acompanha essa turnê, Sérgio Martins faz um comentário certeiro: “Os discos e shows de Marisa são uma ‘aula’ de MPB para os mais jovens, que desconhecem a riqueza do cancioneiro popular”. Eu diria que era exatamente isso o que a artista estava fazendo pelo rock. Em vez de ser parte dele, ela estava contribuindo para a sua abertura.
O comentário era também um recado para os editores e o público da revista, mais inclinados para o rock, então em nova efervescência por conta do cenário nacional e anglo-americano. Na votação dos leitores para os melhores artistas brasileiros de 1994, destacam-se os álbuns das bandas revelação: Mundo Livre S/A, Raimundos e Chico Science. Marisa só aparece na lista das melhores vocalistas elaborada pelos críticos.
Muito mais interessante foi a cerimônia do primeiro Video Music Brasil, promovida pela MTV em agosto de 1995. Apesar da emissora, àquela época, estar também bastante dominada pelo rock, as atrações da noite foram mais plurais. Para começar, Marisa foi a grande vencedora dos prêmios, com “Segue o Seco” ganhando em cinco categorias, incluindo “Videoclipe do Ano”.
Além da apresentação de Marisa, tivemos Virna Lisi e Planet Hemp defendendo a nova geração. Outra banda revelação, a Chico Science & Nação Zumbi convidou Gilberto Gil para o palco. Outra presença em Rosa e Carvão, Carlinhos Brown, cantou com Paralamas do Sucesso. Brown voltou aos tambores na companhia de João Barone e de Charles Gavin (que também tocou com sua banda) como apoio para os metaleiros do Sepultura!
Os encontros daquela noite mereceriam muitas páginas de comentários. Eles, por exemplo, antecipam coisas que seriam registradas nos álbuns de Chico Science (música com Gil), da Sepultura (participações de Brown), dos Paralamas (vocal de Djavan) e dos Titãs (música com Sepultura). Mais importante: mostram como o rock se abrira no momento em que, mais uma vez, quis se apresentar como brasileiro.
Outra discussão começaria com questões sobre os rumos contemporâneos da velha sigla MPB. Em vez disso, deixemos a palavra final com Marisa Monte, em um comentário que faz aproximações entre MPB e rock pensando ainda no cenário dos anos 80, quando o tom dominante era de oposição entre as duas cenas. Em entrevista para o Jornal do Brasil em 1994, ela disse: “Rock é MPB. A MPB precisava dizer ‘a gente somos inútil’, ‘a gente não quer só comida’ com a virilidade e o brutalismo do rock”.
Nota: agradeço a Herculis Tolêdo pelos comentários e materiais. Herculis é o fã que Marisa merece ter.
Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).