O humor fino do Arctic Monkeys em “The Car”

 

 

 

Arctic Monkeys – The Car
37′, 10 faixas
(Domino)

5 out of 5 stars (5 / 5)

 

 

 

 

Depois que ouvi “The Car” pela quarta vez, me lembrei do … Oasis. Sim, mas não lembrei do som dos irmãos Gallagher e sim da capa do primeiro álbum deles, “Definitely Maybe”, lançado em 1994. Ali estava uma foto dos integrantes do grupo numa sala bem iluminada e cheia de referências. Uma delas era a foto de Burt Bacharach, compositor americano de pop perfeito, que, naquela altura do tempo, estava amargando um ostracismo injusto. Pois bem, os Gallagher se declararam fãs de Burt e, como quem capta uma onda em movimento, o laureado autor de vários clássicos ao longo do tempo, começou a ser revalorizado e adotado como influência por novos (Stereolab, High Llamas, Divine Comedy) e velhos (Elvis Costello) artistas. Pois bem, corta pro novo álbum dos Monkeys. Há muita, mas muita mesmo, influência de Burt Bacharach ao longo das dez faixas deste ótimo “The Car”, mas não só ele. Há pinceladas de David Bowie, Pulp, Divine Comedy e um monte de gente que pegou referências na obra do homem.

 

 

Claro, não é apenas isso. O oitavo disco de Alex Turner e companhia é uma evolução natural do anterior, o já ótimo “Tranquility Base Banda inglesa lança novo disco que amplifica e descomplica a sonoridade do anterior, abrindo espaço para ótimas camadas de ironia fina.Hotel And Casino”, lançado em 2018, que soou como uma ruptura no rock indie que o grupo praticava até então. Uma olhada/ouvida atenta aos outros discos lançados pelos Monkeys, no entanto, vai mostrar que, mesmo dentro do que se chama de “rock indie”, os caras nunca foram acomodados, vivendo um fluxo de busca constante por referências e experiências novas. Agora, com “The Car” é que eles parecem dar uma certa continuidade ao som que elaboraram em “Casino”, que era, por sua vez, uma espécie de homenagem ao rock sessentista sob o ponto de vista de gente como Serge Gainsbourg ou Scott Walker e uma pitadinha de Beach Boys. Os fãs estranharam, mas o álbum era tão bom que não havia como negar a excelência do que estava nele.

 

 

“The Car” é uma nova investida de Turner por este imaginário coletivo de um futuro que não aconteceu. Ele faz isso de um jeito muito próprio e muito discreto, pendendo mais a balança para o lado da diversão. Ele brinca com a fama, com o luxo frívolo e com as indicações materiais de que alguém é “bom” ou “ruim”, a saber, paisagens instagramáveis, experiências em restaurantes e toda sorte de banalidade hipervalorizada. E a moldura sonora que ele e sua turma elaboram é calcada num hibridismo Bowie-Bacharach-via-Pulp que é uma lindeza obscura, irônica e cheia de arranjos rodopiantes de cordas e pianos. Acima de tudo, “The Car” é um disco muito bem feito, bem produzido (por James Ford, que está com a banda desde o primeiro álbum, de 2006) e estrategicamente posicionado no hall daquelas obras em que o artista se diverte por dar seu recado sem fazer concessões ou pensar muito no público.

 

 

O humor é muito bem-vindo a bordo e ele já se mostra na sensacional capa, na qual um Toyota Corolla branco jaz num estacionamento vazio num terraço de Los Angeles, como se fosse uma criatura refletindo sobre sua insignificância diante do mundo e de todos. Pelo menos é o que minha intuição me diz sobre a foto que estampa o álbum, mas pode ser algo totalmente diferente e/ou aleatório. As canções são maravilhosas, todas em seus mundos próprios, se comunicando aqui e ali. A melhor delas é “Big Ideas”, que tem um tom dramático, adornado por pianos e uma bateria seca, milimetricamente postada para soar meio desinteressante para desaguar num refrão cheio de cordas. Temos o single, “There’d Be Better Be A Mirrorball”, chique que só ele, mostrando já no título a inclinação de Turner pela diversão decadente, na qual os globos de espelhos nos tetos mais refletem ilusões que pessoas. Tem o ritmo monótono de “Body Paint”, cantada em falsete canastrão intencional, lembrando uma balada pianística contrabandeada de uma gravação de Freddie Mercury que nunca existiu.

 

 

“The Car” é um disco intrincado, uma piada finíssima, muito boa, inteligente e feita para quem consegue entender entrelinhas. Não é um disco para cantar junto no estádio, mas para decorar letras, passagens e cantar sozinho no quarto, imitando grandes ídolos. Existentes ou não. Maravilhoso.

 

 

Ouça primeiro: o disco todo.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “O humor fino do Arctic Monkeys em “The Car”

  • 22 de outubro de 2022 em 15:17
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    CEL comenta sobre o disco no Rock on Board. Gostaria de ouvir mais sua opinião, faixa a faixa talvez?! Perfect Sense é a minha preferida aqui, por enquanto. Aprecio muito suas opiniões, abraço!

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  • 21 de outubro de 2022 em 11:27
    Permalink

    Só fui começar gostar dos Artic Monkeys através do ” Tranquility Base Hotel e Casino “, achava a banda superestimada, mas esse disco e sensacional, ainda mais com todas essas referencias, Bowie, Bacharah, etc…

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