Os trinta anos de “Titanomaquia”

 

 

 

 

Na atual turnê dos Titãs reunidos, o repertório não tem incluído nenhuma faixa de Titanomaquia. Uma ausência significativa, que instiga este comentário-celebração de seus trinta anos. De fato, o sétimo álbum de estúdio da banda expressa um momento muito preciso da trajetória dos Titãs. Paradoxalmente, não deixa de ser uma obra intempestiva, cuja força e energia continuam pulsando.

 

 

 

 

Rejuvenescendo e apodrecendo

 

Partamos de dois fatos. O primeiro é a saída de Arnaldo Antunes, no final de 1992, já com os ensaios para o novo álbum iniciados no Estúdio Oásis. Ao passo que Arnaldo foi experimentar em seu primeiro projeto solo (Nome, 1993), os Titãs, agora um septeto, seguiram no caminho tomado por Tudo Ao Mesmo Tempo Agora (1992), o antecessor de Titanomaquia.

 

 

Esse caminho havia sido um desvio, se consideradas certas expectativas baseadas na linha “evolutiva” da banda. Depois do casamento com a eletrônica de Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas e de Õ Blésq Blom, abençoado pelo produtor Liminha, Tudo ao Mesmo Tempo Agora veio com um som cru e guitarreiro.

 

 

Na nova fase sem Arnaldo, a banda investe em letras mais despojadas, menos cerebrais. As guitarras continuam a dar o tom em Titanomaquia, mas com uma preponderância ainda maior, permitindo quase que um abandono dos teclados. O resultado mostra menos variações e mais coesão do que o álbum anterior.

 

 

Isso nos leva ao segundo fato: a banda estava ressentida com as críticas lançadas contra Tudo ao Mesmo Tempo Agora. Com uma posição confortável dentro da WEA, sua gravadora desde o primeiro álbum, optaram pelo confronto: “não é que eu vou fazer igual, eu vou fazer pior”. Em vez de uma retomada da linha “evolutiva”, mandaram um som ainda mais pesado, pouco disposto a agradar padrões comerciais e a satisfazer os críticos musicais.

 

 

Não apenas a letra de “Nem Sempre se Pode Ser Deus” parece ser dirigida aos críticos. Versos de pelo menos outras duas faixas soam na mesma frequência: “Quem é que se importa com o que os outros vão dizer?” (“Será que é Isso que Eu Necessito?”) e “Se eu tivesse seus olhos eu seria famoso” (“Taxidermia”). Note-se que “Será…” foi escolhida como música de trabalho e ela e “Nem Sempre…” foram as únicas destacadas em videoclipes.

 

 

Para calibrar a sonoridade dessa declaração de autoafirmação, a banda não reatou com Liminha, de quem se afastara em Tudo ao Mesmo Tempo. Mas não insistiu na autoprodução, e nisso, admitamos, houve uma concessão às críticas lançadas contra o álbum anterior.

 

 

Em lance arrojado, a gravadora e a banda importaram Jack Endino. Guitarrista da Skin Yard, uma das fundadoras do grunge de Seattle, Endino associou-se à Sub Pop, gravadora emblemática do gênero. Entre 1987 e 1989, produziu álbuns da Soundgarden, da Green River, da Mudhoney, da Tad e da Nirvana.

 

 

Endino recebeu uma demotape da banda e chegou a tempo de checar os últimos ensaios. A convivência se prolongou nas gravações no Estúdio Art Mix, São Paulo, em março de 1993. Depois, Endino viajou para o Rio, onde, no Estúdio Nas Nuvens, ocorreu a mixagem, também na companhia de Paulo Junqueiro, engenheiro de gravação. O gringo passou 44 dias no Brasil, começo de uma parceria que renderia outras colaborações.

 

 

A escalação de Endino comprova que Titanomaquia, com suas 13 faixas, é o álbum grunge dos Titãs, como alguns comentários apontam? Sim e não.

 

 

Sim, se aceitamos a ideia que define o grunge como algo entre o punk e o metal, em dosagens distintas conforme as vertentes surgidas dentro do gênero. No caso dos Titãs, o punk já era um elemento presente, marcante mesmo no caso de Cabeça Dinossauro. Em Titanomaquia, ele é retomado com força, como em “Nem Sempre se Pode ser Deus”, “A Verdadeira Mary Poppins”, “Taxidermia” e “De Olhos Fechados”, ou conjugado em modo minimalista em certos sons e letras (em especial, “Felizes São os Peixes”).

 

 

Mas o metal é algo novo e distingue Titanomaquia na discografia titânica. A rigor, nenhuma das faixas do álbum é uma música de metal. Mas traços do gênero estão bem presentes nos riffs de guitarra que percorrem “Disneylândia”, “Estados Alterados da Mente”, “Agonizando”, “Fazer o quê?” e “Dissertação do Papa sobre o Crime Seguida de Orgia”. Sérgio Britto, pela primeira vez, usa um registro gutural em sua voz em duas dessas faixas.

 

 

Ao contrário do que as duas enumerações acima parecem sugerir, punk e metal não estão separados, mas convivem em muitas músicas. O punk age sobre o metal para subtrair os solos, o metal age sobre o punk para aumentar seu peso. “Será…” ilustra os resultados, com sua oscilação vocal, entre o grito e o pop.

 

 

 

 

Podemos ainda associar à influência metaleira certo rebuscamento que encontramos em Titanomaquia. Esse rebuscamento aparece no trabalho das guitarras de Toni Bellotto e Marcelo Fromer em várias músicas e também na inspirada percussão de Charles Gavin. São essas guitarras que adaptam o coro que acompanha uma peça de Eurípedes do século III antes de Cristo para fazer a introdução de “Fazer o Quê?”

 

 

 

O rebuscamento aparece também nas letras de “Dissertação…”, tirada diretamente de um texto do século 18 assinado pelo Marquês de Sade, bravamente cantada por Branco Mello, e de “Disneylândia”, criativa colagem que produz imagens impactantes, com Paulo Miklos nos vocais. Se a primeira é um tratado de atrocidades, a segunda pinta um quadro complexo do que se chamava de “globalização”.

 

 

Ok, temos então uma combinação de punk e metal que permite a aproximação com o grunge. Mas o resultado não soa derivativo. Nenhum dos comentários sobre o álbum faz uma associação direta do som de Titanomaquia com esta ou aquela banda de Seattle.

 

 

Junto com isso, notemos que há faixas que destoam da fórmula grunge. É o caso de “Tempo para Gastar”, bem rock’n’roll, com suas guitarras inundadas de wah-wahs. É também o caso de “Hereditário”, música que poderia estar em Õ Blésq Blom, por conta da importância dos teclados. Não por acaso, sua letra, genial, está entre as três com a participação de Arnaldo.

 

 

De todo modo, a sonoridade de Titanomaquia é encorpada e enérgica. Nada há de suave, nem mesmo de suingue no álbum. Tons sombrios predominam, em sintonia com letras que passam longe de temas românticos.

 

 

Em entrevistas, a banda declarou ter vivido um rejuvenescimento com a produção do álbum. É curioso como esse rejuvenescimento ganha uma expressão que corteja o seu oposto. Refiro-me às letras que conjuram a degradação, “Agonizando” sendo o caso mais explícito. Esse oposto não é algo simples, pois equilibra doses de niilismo e hedonismo.

 

 

A capa de Titanomaquia, que chegou às lojas em julho de 1993, expressa essa combinação com sua dupla embalagem. Tomando a versão em vinil, o papel-cartão mostra uma composição em sete cores, com um vermelho vivo no centro. A primeira tiragem trazia um segundo envoltório, feito de plástico preto usado como sacos de lixo.

 

 

O designer Fernando Zarif foi também o responsável pelo cenário do show que divulgou o álbum. Inspirado em obras do dadaísta/surrealista Francis Picabia, o background era preenchido por discos metálicos. No palco, as cores vivas estavam ausentes, destacando o peso do som de Titanomaquia. O álbum foi a base para o show da banda no Hollywood Rock de 1994.

 

 

No seu tempo, fora do tempo

 

Apesar de seu apelo comercial limitado, Titanomaquia não ficou longe dos holofotes. Na eleição organizada pela revista Bizz, seus leitores o apontaram como o terceiro melhor álbum brasileiro. “Será que é Isso o que Eu Necessito?”, além de constar em quarto na lista da Bizz das melhores músicas de 1993, representou o Brasil na competição internacional da MTV.

 

 

Foram boas notícias para uma banda que não podia simplesmente desprezar o “mercado”, considerando o passivo que precisava administrar. Entendemos assim a preocupação em divulgar para as rádios uma versão da música de trabalho sem os dois palavrões que enfeitavam a sua letra.

 

 

Na verdade, os Titãs estavam interessados em ampliar o seu alcance. A colaboração com Endino levou a banda a preparar versões de várias músicas de Titanomaquia com letras vertidas para o inglês. Mas o projeto não foi adiante, dadas as suspeitas de que seu som não se distinguiria no cenário dominado pelo grunge.

 

 

Aqui apareciam os limites do caminho tomado pela banda, prenunciados pelo desfecho da história que serviu de inspiração para o batismo do álbum. Titanomaquia é como se chama na mitologia grega a guerra dos titãs contra os deuses olímpicos. Guerra que os titãs perdem.

 

 

Outro sinal aconteceu na Argentina, quando a banda abriu três shows da Sepultura em abril de 1994. Diante de uma plateia metaleira, o peso de Titanomaquia não pareceu suficiente ou autêntico. Como contam Hérica Marmo e Luiz André Alzer em seu livro, Max Cavalera teve que intervir para que as vaias e os cuspes parassem.

 

 

A crítica musical se pronunciou de maneira temperada. Elogiou a produção de Endino, mas confessou não entender os propósitos de Titanomaquia. Os lamentos e exaltações das letras não pareciam convincentes vindos de homens passados dos trinta anos reunidos em uma banda com uma trajetória de sucesso.

 

 

Retrospectivamente, Titanomaquia revelou-se um caminho sem saída para os Titãs. Seu próximo álbum, Domingo (1995), embora tenha sido também produzido por Endino, tem um olhar mais generoso para o passado da própria banda e para o mundo ao redor, abrindo caminho para a fase de versões e covers que vem depois. Significativamente, as músicas do álbum de 1993 estão pouco presentes nas compilações e shows nesses períodos seguintes.

 

 

Mas a época de Titanomaquia contém outras ocorrências relevantes. Com o fim da turnê em julho de 1994, os integrantes do septeto puderam se dedicar a outros projetos. Britto e Branco formaram com Roberta Parisi a banda Kleiderman e lançaram o que ficou sendo seu único álbum (Con el Mundo a Mis Pies, 1994). A sonoridade próxima a Titanomaquia revela o papel destacado que ambos tiveram nos rumos dos Titãs naquele momento.

 

 

Miklos também lança seu primeiro álbum solo em 1994. O mesmo ocorre com Nando Reis, em 1995. Paulo Miklos e 12 de Janeiro são muito diferentes de Titanomaquia, o que é uma outra forma de enxergar seus limites. No caso de Reis, as divergências eram mais nítidas, pois sua participação como compositor e como vocalista foi bem menos relevante em comparação com outros momentos da banda.

 

 

Empreendimento mais coletivo redundou na criação de um selo, batizado de Banguela Records, cujas atividades iniciaram em 1994. O Banguela era administrado pelos Titãs, mas beneficiava-se da estrutura de distribuição da WEA. Ele foi um dos responsáveis pela contratação e divulgação de bandas que renovaram o rock brasileiro naquele momento, como Raimundos, Mundo Livre S/A e Little Quail and the Mad Birds.

 

 

Um parceiro importante para o Banguela foi Carlos Eduardo Miranda. Sua aproximação com a banda está documentada em uma reportagem que ele publicou na edição de junho de 1993 da revista Bizz. Entre os Titãs, Gavin foi o que mais se envolveu no trabalho de produção de novas bandas, ao passo que Bellotto, por exemplo, preferiu se dedicar à literatura (Bellini e a Esfinge, 1995).

 

 

Diante dessa contribuição da banda para os rumos da música brasileira, Titanomaquia parece pertencer a um outro plano, com pouco contato com a realidade externa. É sintomático que a música utilizada no apoio a uma importante mobilização social da época (a Campanha contra a Fome iniciada em 1993) tenha sido uma faixa – “Comida” – de um álbum muito anterior (Jesus…).

 

 

Enfim, Titanomaquia tem vários tempos. É o caminho sem saída tomado por uma banda no início da década de 1990. É a trilha sonora da época do início do Banguela Records. É a imersão que permitiu que alguns dos integrantes fizessem outras coisas, inclusive na música. É o que resultou de uma viagem para fora da realidade imediata – e por isso mesmo é um álbum que envelheceu bem, tornando possível extrair sonoridades e letras de seu contexto de criação.

 

 

Sua energia continua pulsando. Alimenta nossa cota manejável de niilismo e de hedonismo. Sem medo do ridículo, suas músicas animam até quem tiver bem mais do que a idade com que Cristo morreu.

 

 

 

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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