Arnaldo Antunes: 30 Anos de Experimentalismo Pop
Nome é o primeiro trabalho solo de Arnaldo Antunes. Enquanto os Titãs, com um integrante a menos, aumentam o peso de sua música em Titanomaquia, Arnaldo opta por uma mudança profunda. Investe no experimentalismo, embora sem romper as ligações com o universo do pop.
A experimentação começa já no formato. Nome foi distribuído em duas versões: CD/LP/K7 com 23 faixas e VHS/livro com 30 músicas-poemas. Ainda que o próprio artista dissesse que havia um livro para ser lido, um álbum para ser ouvido e uma coleção de vídeos para serem vistos, ficava evidente a aposta em uma concepção (então inovadora) multimídia, com linguagens que se interconectavam.
Novidades, aliás, abundam em Nome. Arnaldo aparece como instrumentista, atuando no violão, guitarra e recursos eletrônicos. No entanto, apenas em contraste com o trabalho anterior é que o projeto pode ser considerado “solo”. Paulo Tatit e Rodolfo Stroeter acompanham Arnaldo na produção e nos instrumentos. Como veremos, há várias outras participações.
A principal novidade, contudo, está no terreno visual, por onde o projeto começou em 1992. Os trinta vídeos foram relançados como DVD em 2006, junto com o CD remasterizado. Para a produção desse material, Arnaldo contou com a colaboração de Célica Catunda e Kiko Mistrorigo, especialistas em animação computadorizada. Zaba Moreau, então sua esposa, também participou da elaboração dos vídeos, além de tocar teclados no trabalho sonoro.
Como livro, Nome dá continuidade ao trajeto de Arnaldo enquanto poeta com várias obras publicadas: Ou E (1983), Psia (1986), Tudos (1990) e As Coisas (1991), este ganhador do Prêmio Jabuti. Sua faceta escritor foi ganhando dimensões consideráveis e essa foi uma das razões que causaram sua saída dos Titãs.
De fato, Nome, com suas várias linguagens, tomou bastante tempo para ser elaborado em estúdios paulistanos. Foram mais de 18 meses, entre janeiro de 1992 e agosto de 1993. O lançamento ocorreu nos meses finais de 1993, pela BMG Ariola, outro sinal de mudanças, quando os Titãs continuaram com a Warner.
Uma leitura possível de Nome é tomar o projeto como uma extensão do trabalho de Arnaldo como escritor. Sua poesia é fortemente influenciada pelo concretismo. E o concretismo recusa-se a conceber a linguagem como texto. Assim, sua expansão para a música – como poesia sonora – e para o vídeo – como poesia visual – é um ideal a ser alcançado.
Por outro lado, se aceitamos que a palavra é primordialmente som, a música tem restabelecida sua posição fundamental. No fundo, o que importa é apreender simultaneamente as várias dimensões contidas na linguagem. Neste comentário, atenho-me ao trabalho sonoro das 23 faixas do álbum Nome (na versão CD, pois o vinil e o cassete têm duas a menos).
Palavras para quê?
O tema que atravessa Nome é o da linguagem. Nisso se confirma seu caráter poético, pois é o trabalho sobre (e com) a linguagem que define a poesia. É uma espécie de luxo a que poucas pessoas se dedicam, mas para revelar algo que é constitutivo do uso das palavras por todo mundo.
“Nome Não” é a faixa que permite acessar mais diretamente o tema do álbum. A letra trata de bichos e de cores, alertando para o arbitrário das palavras: os nomes das coisas não são as coisas. Reitera essa distância apontando para os materiais de são feitos os bichos e que revelam as cores. “Só os bichos são bichos / só as cores são cores”.
Ao mesmo tempo em que sabemos disso, temos que admitir que precisamos irremediavelmente das palavras para falar das coisas. Mesmo que fiquemos em silêncio, elas estarão em nossas mentes, tal como as aprendemos desde muito cedo em nossas vidas. E se alguém fizer uma letra para dizer que “só os sons são”, vai usar palavras para expressar isso.
O contraponto a “Nome Não” é exatamente outra faixa do álbum, “Nome”. Nesse caso, as palavras explodem em sua capacidade de dizer mais do que as imagens. “Isso é o nome da coisa”. Ou, como faz um poema de As Coisas: “Todas as coisas do mundo não cabem numa ideia. Mas tudo cabe numa palavra, nesta palavra tudo”.
A linguagem pode transformar as coisas, como ocorre em “Cultura”, com suas descrições desconcertantes: “O cavalo é o pasto do carrapato / A cegonha é a girafa do ganso”. Os seres ganham novos encadeamentos, como ocorre também na genial “O Macaco”: “Pessoas se parecem com peixes / quando ainda não nasceram”.
Sim, podemos usar as palavras para nos revoltar contra a linguagem (“Não Tem Que”) ou para produzir algo incompreensível, como é o caso de “Soneto”, em que um poema de métrica rigorosa tem suas palavras embaralhadas pelos sons da música.
Ou então podemos admirar como as palavras têm mais de um sentido e de uma forma, criando ambiguidades e confusões que complexificam (ou complicam) as coisas, como sugerem “Fênis” (que poderia ser “Pênix”), “Se Não Se”, “Dentro”, “Imagem”, “Campo”, “Armazém”, “Acordo” e “Agora”.
Há espaço para outros jogos e recursos, como os absurdos e paradoxos de “Entre”, “Luz” e “Pouco”. “Tato” desloca a atenção para outro sentido, multiplicando as formas do sexo. “Diferente” nos deixa pensando se trata de um feto, de indígenas ou de seres de ficção.
Em “Direitinho”, a linguagem acompanha a ordem das coisas, ao passo que em “Carnaval” converte uma “árvore” em “máquina”, a facilidade dessa operação sendo tão intrigante quanto a tranquilidade do que parece estar “muito bem”.
“Alta Noite” utiliza versos mais convencionais para imaginar uma paisagem sem ninguém, em contraponto com “E Só”, que retrata um alguém sem paisagem.
“E Só” já havia aparecido em uma coletânea de 1991 (Rock de Autor), talvez como prenúncio ou profecia da separação de Arnaldo em relação aos Titãs. Como vimos, o trabalho sobre Nome começa ainda quando ele integrava a banda de seus amigos.
Sonoramente, Nome está bem distante dos Titãs. O principal motivo é que também as palavras estão no centro da criação sonora. Se na música toda voz é instrumento, nesse álbum a regra vale por muito mais. As faixas que estão no seu início e fim são exclusivamente compostas pela voz de Arnaldo. Na verdade, “Fênix”, a abertura, é apenas o som de suas respirações.
Várias outras faixas têm no seu núcleo a voz de quem canta. Em alguns casos, se trata mais de uma declamação de que de um canto. Mas ainda aí, o mais recorrente é o acompanhamento de instrumentos, que mesmo como coadjuvantes contribuem para conferir o tom pretendido pelas palavras. A maioria não chega a dois minutos.
Sobre esse acompanhamento musical, cabe destacar os elementos eletrônicos, mesmo com a preferência por baixas tecnologias. Em sintonia com essa característica atuam outros instrumentos, como os ruídos das guitarras de Arto Lindsay e de Edgar Scandurra e a percussão de objetos de oficina e de cozinha por Peter Price.
Por conta da concisão dessa instrumentação, predomina uma atmosfera industrial em algumas músicas, como “Não Tem Que” e “Pouco”. Em “Diferente” essa atmosfera se combina com uma bossa dissonante. Em “Nome”, é enfurecida por riffs e vozes que não ficariam deslocados em uma performance punk.
Mas há faixas em que melodias tomam corpo, acrescentando outros tons a Nome. “Direitinho” é uma das participações de Marisa Monte no álbum, com um resultado que dialoga com o que ela fazia em suas produções contemporâneas. Em “Alta Noite”, ela protagoniza um dueto de vozes contrastantes com Arnaldo, sobre o piano bossa nova de João Donato.
Marisa volta a colaborar em “Carnaval”, que descamba em um samba eletrônico, e também em “Cultura”, ronronando ao som de um reggae viajante. Ainda mais pop é “Nome Não”, que poderia ter tocado nas rádios de qualquer boa emissora.
Poesia pode ser pop?
Na época de seu lançamento, Nome não teve grande repercussão como álbum. Os extremos da crítica o atingiram, com comentários, uns taxando-o de difícil por seu experimentalismo musical, outros condenando seu objetivismo poético como banal.
Arnaldo tinha que promover Nome em várias frentes, sustentando sua proposta multimídia, ao passo que nas entrevistas as pessoas às vezes estavam mais interessadas em saber por que ele havia saído dos Titãs ou em buscar uma musicalidade em limites mais convencionais do que o álbum propunha.
Significativamente, a primeira aparição pública de Nome foi em um evento artístico, o 2º. Fórum de Artes Visuais, que ocorreu em Brasília em 1993. Meses depois, o projeto receberia os elogios do concretista Augusto de Campos, um dos ídolos de Arnaldo.
Mas seria enganoso pensar que houve um distanciamento do universo da música por parte do artista. São várias as parcerias que se desenvolvem naquela época. Por exemplo, Arnaldo escreve a letra de “Perigo”, faixa de Música Calma para Pessoas Nervosas, álbum do Ira! de 1993. Presenteia Cássia Eller com “Socorro”, que a grava em seu álbum de 1994.
Com Marisa Monte, sua colaboração é mais intensa, distribuindo-se em momentos anteriores e posteriores a Nome. Ele compõe várias letras de Mais (1991) e de Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão (1994), álbum no qual reaparece, em nova gravação, a faixa “Alta Noite”.
Em 1993, Gil e Caetano musicam o poema “As Coisas” como parte de Tropicália 2. Vale notar que Péricles Cavalcanti, figura próxima dos baianos, tem duas participações em faixas de Nome.
Aproveitemos o mesmo movimento para notar que, apesar das grandes distâncias entre o trabalho solo de Arnaldo e a carreira dos Titãs, encontramos ao menos dois precedentes das experiências desenvolvidas em Nome. “O Que”, faixa de Cabeça Dinossauro, foi publicado como poema em Psia, livro do mesmo ano de 1986. “Todo Mundo Quer Amor”, faixa de Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, é toda composta por percussão minimalista e voz humana, eletronicamente processadas.
O show associado a Nome teve uma curta turnê, iniciada em maio de 1994. Representou praticamente um quarto tipo de formato para o projeto, por conta da contribuição do artista Nuno Ramos. Ele produziu camisas gigantes para o palco, sobre as quais eram projetadas imagens que vinham das animações que acompanhavam as músicas nos vídeos.
No repertório do show, apenas 12 faixas de Nome foram incluídas. Elas dividiram espaço com nove outras músicas, a maioria delas entraria no álbum seguinte, Ninguém (1995). No palco, ao lado de Peter Price, Zaba Moreau, Paulo Tatit e Edgar Scandurra, estava Pedro Ito, baterista que continuaria a colaborar com Arnaldo.
Ninguém apresentará uma sonoridade mais convencional, misturando faixas pop rock com faixas mpbísticas, o que de modo algum o destitui de criatividade e interesse. Tematicamente, várias de suas letras dão continuidade aos tópicos de Nome, algo que ainda se prolonga, embora com menor força, em Silêncio, álbum de 1996.
Parece correto afirmar que Nome foi o trabalho mais experimental de Arnaldo Antunes dentro de uma trajetória que o trouxe de volta ao terreno do pop, dentro do qual ele se movimenta até hoje. Se é verdade que seu pop não renuncia de todo ao experimentalismo, Nome não deveria ser apreciado apenas por ouvintes supostamente eruditos.
A poesia de Arnaldo, como vimos, versa sobre coisas básicas, buscando reunir simplicidade infantil e sofisticação filosófica. Na verdade, ela bagunça essas associações, mostrando como crianças são sofisticadas e como filosofia é algo praticado por todos.
Em um país em que a literatura é pouco frequentada, devemos saudar a chance de acessar poemas embalados por sons instrumentais (ou música transformada em poesia, se preferir), mesmo se isso não for o que mais nos agrada. Considerá-la difícil pode revelar preguiça no pensar. Considerá-la banal pode revelar elitismo no sentir.
A poesia de Arnaldo tem várias aproximações com a de Paulo Leminski, alguém que ele admirava e que também manteve interações com o mundo da música. Leminski acreditava que a poesia podia ser pop, sem abrir mão de seus poderes de transtornar. Em Distraídos Venceremos (1987) lemos isso, nem banal nem difícil:
lua à vista
brilhavas assim
sobre auschwitz?
Nota 1: O volume de estudos sobre a obra de Arnaldo Antunes é imenso. Para compor este comentário, privilegiei trabalhos mais antigos, como os de Modro (1996) e Memelli (1998). A tese de Filgueira (2015) é valiosa pela compilação de entrevistas.
Nota 2: Seleção de vídeos-poemas de Nome:
Dentro e Tato, literalmente o corpo das palavras.
Não Tem Que, por suas colagens urbanas, sem proibições.
Se Não Se, por suas abundâncias, exemplo de poema visual no sentido estrito.
Pouco, com sua explosão de cores, a tela insuficiente para as palavras.
Armazém, com suas (outras) palavras em movimento.
Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).