Fazendo as pazes com Van Morrison
Van Morrison – Accentuate The Positive
61′, 19 faixas
(Exile)
Van Morrison é um dos meus heróis musicais. Com uma carreira que remonta a meados dos anos 1960, inicialmente no grupo Them, depois solo, Van é uma máquina sonora de fusão de gêneros populares como rock, soul, jazz e folk, tudo sob uma égide celta de visão e interpretação dessas informações. Ao longo desse tempo, sua obra teve, claro, altos e baixos, mas experimentou um mergulho nas águas escuras do obscurantismo quando veio a pandemia de covid-19 e, com ela, o isolamento social e a obrigatoriedade da vacina. Van foi uma das vozes a bradar conta tudo isso, acusando o governo e a mídia de conspirar para tomar a liberdade das pessoas. Ou seja, para ele, ficar isolado em casa era balela e a necessidade imunização algo a ser relativizado. Com isso, tornou-se um tiozão do whatsapp, conspirando e fazendo feio. Ao mesmo tempo, o sujeito experimentou uma explosão de criatividade, lançando dois discos – um deles, duplo – em um espaço de um ano. O conteúdo, lamentável, ganhou notas baixíssimas ao redor do mundo (resenhas aqui e aqui) e parecia ferir de morte um artista genial. Pois bem, a tal criatividade borbulhante de Van não é privativa do período pandêmico, na verdade, ele vem galopante desde o início dos anos 2000, tendo lançado mais de vinte álbuns nos últimos 23 anos. E agora, 2023, ele fecha a fatura com nada menos que três lançamentos. “Moving On Skiffle”, “Beyond Words: Instrumentals” e este ótimo “Accentuate The Positive”. Felizmente, nenhum sinal de burrismo.
Aliás, é sintomática a natureza dos lançamentos do homem. “Moving On Skiffle” e “Accentuate The Positive” são dois álbuns de versões, sendo o primeiro – duplo – totalmente devotado a uma das paixões primevas de Van, o skiffle, espécie de primo britânico do country. O segundo traz um compêndio de dezenove faixas, executadas com brilho por Van e um time de raposas felpudas de estúdio, capazes de recriar um cancioneiro do rock inicial, da virada dos anos 1950/60, com ênfase no aspecto r&b da coisa, ou seja, mais explicitamente: música para dançar. E “Beyond The Words: Instrumentals” é, como o nome já diz, uma coletânea de várias faixas sem letra gravadas por Van ao longo da carreira, ou seja, tem a curiosidade histórica de mostrar várias fases distintas e abordagens diversas, se constituindo num verdadeiro tesouro para fãs, além de marcar o início da operação do selo próprio de Van, o Orange Fields, que irá trazer vários outros lançamentos de raridades do catálogo pregresso do homem. Sintomático que, após tanta má interpretação do presente, Van tenha se voltado para o passado, talvez – quem sabe – reconhecendo que falou muita besteira por aí. Pelo menos é nisso que quero crer. E me serve.
Quem conhece a obra de Van há de lembrar de duas canções: “Cleaning Windows” e “In The Days Before Rock’n’Roll”, a primeira do álbum “Beautiful Vision” (1982) e a segunda, presente no álbum “Enlightment” (1990). Em ambas, ele conta histórias sobre a adolescência em Belfast e o início de sua paixão pelo rock. Em “In The Days…”, de acordo com o título, ele vai contando sobre como fazia para captar o sinal das rádios que tocavam o nascente rock’n’roll nos anos 1950 e como estas transmissões cheias de chiados, interferências e som péssimo o modificaram para sempre. Impossível não conectar essas aventuras com o resultado exposto em “Accentuate” e, a partir dessa relação de causa e efeito, fazer um percurso emocional por estas canções iniciais, sendo que, o primeiro single lançado trouxe uma nova versão do clássico “Shakin’ All Over” de Johnny Kidd & The Pirates, uma das faixas mais emblemáticas deste período inicial do rock.
Van e sua banda passeiam com diversão e malandragem por obras mais e menos conhecidas do grande público. Desde o r&b primevo de Big Joe Turner em “Flip, Flop e Fly”, passando por cavalos de batalha como “Blueberry Hill” (Fats Domino), “Lucille” (Little Richard) e “Shake, Rattle And Roll”, estas duas últimas com participação de Jeff Beck e Taj Mahal nas guitarras. O veteraníssimo cantor inglês Chris Farlowe divide os vocais em “Lonesome Train” (com um dos últimos solos registrados por Jeff Beck), originalmente gravada por Johnny Burnette, enquanto prossegue o desfile de belezuras. A menos manjada “Bye Bye Johnny”, de Chuck Berry, surge em algum ponto do caminho, junto com “Hang Up My Rock and Roll Shoes”. Ainda há espaço para canções que não eram exatamente rock em sua origem, caso de “I Want a Roof Over My Head”, de Louis Jourdan, que dá as caras com um arranjo próximo das big bands. Também temos uma interpretação emocionada para uma canção dos Everly Brothers, “Problems” e um flerte com o country em “Sea of Heartbreak”, de Don Gibson.
Este é um disco de almanaque, uma celebração e uma reafirmação de Van Morrison como um cara a ser considerado, mesmo em 2023. A gente gosta tanto dele que está disposta a dar uma esquecida nas péssimas declarações e retomar nossa relação – que já dura uns 30 anos – a partir de agora. Como se quisesse perdoar um erro recente e tolo. Não é assim que fazemos quando amamos alguém? Agora é contigo, Van.
Ouça primeiro: O disco todo é ótimo.
Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.