Dub: do improviso ao futuro

 

 

Não sei se você notou, mas andamos falando de processos interessantes que levaram a música para passeios por lugares nos quais seus limites foram aumentados/transformados e suas características expandidas muito além da fórmula consagrada na metade do século 20, a saber: três minutos, duas estrofes, refrão, uma estrofe, repete refrão. Esta sequência ainda é imbatível se usada com inteligência, mas foram instâncias como o remix, o uso do sampler e o Dub que arremessaram todo este formalismo para um universo de liberdade, interconexão e correspondência. Claro que isso aconteceu naturalmente e envolveu invenção e expressões artísticas que começaram lá nos subterrâneos das cidades e evoluíram para o protagonismo da mídia.

 

 

O Dub surgiu na Jamaica, em fins dos anos 1960. Sabemos que a ilha é o berço do Reggae, do Ska e outros ritmos e variações muito legais. A produção jamaicana é um milagre por vários motivos, desde o puro e simples talento de gente que mal tinha o que comer, como pelos improvisos e gambiarras que esse pessoal fazia para exercer a atividade artística e de produção de discos. A Jamaica foi parte do Império Britânico por muito tempo, tornou-se independente em 1962 e, como a maioria dos países do Caribe, a ilha tem como uma de suas maiores características a pobreza. Esta condição fez com que os produtores jamaicanos, ao gravarem discos para artistas locais, precisassem improvisar em várias ideias. O Dub foi uma delas. Para tornar faixas de sucesso maiores e com trechos instrumentais – para que o público cantasse junto – estes produtores foram mexendo e remexendo nas gravações que faziam, enfatizando graves, batidas, baixos e inserindo efeitos para sustentar o andamento da canção. O resultado era comercializado como um novo produto, garantindo mais alguma receita para o estúdio. Ganharam notoriedade o produtor Lee “Scratch” Perry e seu trabalho para o Ark Studios. Aos poucos essa prática foi se tornando comum e adentrou os anos 1970 como um dos focos de novidade na música negra. O resto é história.

 

O Dub atravessou oceanos, chegou em todos os lugares possíveis e trouxe, acima de tudo, uma mensagem de novidade e mudança. Podemos dizer que sua estrutura livre e o conceito de transformação a baixo custo influenciou o advento do remix, que cumpriu seu papel na evolução da própria noção de música popular. Se não fosse por esses adventos, a música popular ainda seria refém de gente que alia habilidade técnica em instrumentos à ideia de único caminho possível para trilhar este caminho. Dub, remix e sampler, cada um a seu jeito, mostraram que há várias dimensões e camadas de atuação, todas prontas para serem preenchidas por gente com habilidades distintas, que vão muito além do manejo do instrumento musical. O Dub não ficou estagnado e vivendo de glórias do passado. Tornou-se quase obrigatório para artistas de Reggae dominarem técnicas de dubbing em estúdio, especialmente gente como Scientist e Sly & Robbie, que foram, acima de tudo, embaixadores do estilo para gente que fosse estranha ao elemento natural jamaicano. Era comum vê-los nos anos 1970/80 participando de álbuns de gente tão distinta como Serge Gainsbourg, Bob Dylan e Rolling Stones, requisitados e capazes de manter uma assinatura própria no baixo/bateria, sem descuidar, no entanto, de uma carreira prolífica e criativa que vem até hoje.

 

 

Decisivo na ideia das longas gravações do Hip Hop em seu início, o Dub também ressurgiu modificado na cena eletrônica inglesa dos anos 1990. Levado a tiracolo por gente como Massive Attack, Thievery Corporation e The Orb, o estilo foi modificado e contribuiu extensivamente para a criação de novos gêneros como o Trip Hop e o Ambient Dub, que marcaram bastante a época das grandes festas eletrõnicas no Reino Unido, as raves. Segue como uma instância de modernidade constante, com sua história própria que transcorre diante dos nossos olhos. A última associação do Dub com eventos do nosso tempo veio com a noção de Afrofuturismo, que está em voga por conta de vários questionamentos sendo feitos visando a interrupção de manifestações de preconceito racial, bem como a inserção de várias pessoas em camadas sociais de maior poder aquisitivo e com direitos.

 

 

Este diálogo do Dub com o Afrofuturismo se dá por conta da criação de paisagens sonoras de preenchimento de espaço, ecos desbotados e repetição dentro das trilhas musicais, os artistas de Dub são capazes de explorar conceitos afrofuturistas como a não-linearidade do tempo, trazendo a projeção de sons passados como se estivessem em um espaço futuro desconhecido.

 

 

Em um ensaio de 1982, o jornalista Luke Ehrlich usa esta ótima analogia: “Com o Dub, a música jamaicana se espalhou completamente. Se o Reggae é a África no Novo Mundo, o Dub deve ser a África na Lua; é a música psicodélica que eu esperava ouvir nos anos 60 e não ouvi. O baixo e os tambores evocam um espaço escuro e vasto, um retrato musical do espaço sideral, com sons suspensos como planetas brilhantes ou fragmentos de instrumentos se movendo, deixando rastros como cometas e meteoros, é uma montagem musical caleidoscópica que toma sons originalmente intencionais como partes entrelaçadas de outro arranjo e os usa como matéria-prima, os converte em sons novos e diferentes e, em seu próprio ritmo e formato, embaralha continuamente esses novos sons em justaposições inusitadas”.

 

Presente hoje, aspirando o futuro, o Dub é garantia de segurança em sua viagem para lugares inexplorados.

 

 

 

Texto publicado originalmente neste link aqui.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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