Céu que não tem limites

 

 

Céu – Um Gosto de Sol

Gênero: MPB, alternativo

Duração: 43:42 min
Faixas: 14
Produção: Pupillo
Gravadora: Warner

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

Depois de ouvir este ótimo “Chega Mais”, fui dar uma conferida nos números de Céu. São treze anos de carreira e oito álbuns gravados, sendo um ao vivo e outro acústico, em meio à pandemia. Fiquei pensando e ponderando se a cantora e compositora paulistana já poderia ser considerada uma veterana em sua trajetória e logo respondi a mim mesmo: não. Céu tem ainda tanto a oferecer com seu estilo personalíssimo à música brasileira que nem dá pra mensurar. Por outro lado, o que ela registrou neste novo álbum de covers é a prova definitiva de que é uma artista no total controle de sua obra, totalmente ciente do que pode e quer fazer. Ela tem estilo, charme, talento, sensualidade, tudo tão bem equilibrado que a gente chega a sentir uma espécie de confiança absoluta no que ela propõe, seja o que for. E quando a gente está diante de um álbum de versões, caso de “Chega Mais”, o que devemos pensar é se o artista tem a capacidade de se apropriar de diversos estilos entre diversas obras alheias e torná-las indubitavelmente suas. Bem, Céu faz isso nas 14 faixas do disco.

 

Com a produção de Pupillo e acompanhamento de um time de músicos criativo o bastante para jogar no ataque e na defesa, a cantora passeia feliz por um caminho que vai da Sade de 1988, passando pelo Ismael Silva do fim dos anos 1950, sem abrir mão do pop perfeito da Rita Lee setentista e mesmo da guinada eletrônica dos Beastie Boys em 1988. Tudo soa como se Céu fosse a responsável por compor e gravar canções tão diversas no tempo e no espaço. Tudo é natural, falsamente simples, porque, ao longo do percurso sonoro, ela parece nem amassar a barra do vestido tamanha é a naturalidade com que vai enfileirando as versões e releituras. E ainda há outra característica bacanuda em “Chega Mais”: é um disco em tom baixo, para se ouvir como quem conversa, conta/ouve uma novidade sobre alguém. Não é – pelo menos não pareceu – um trabalho para ser ouvido aos altos brados. É quase à meia-voz, uma coisa linda e que se espalha sem precisar soar alta para isso acontecer.

 

E tem detalhes que fazem a diferença. Por exemplo: na introdução de “I Don’t Know”, faixa que os Beastie Boys gravaram em seu ótimo álbum “Hello Nasty”, com participação da cantora Miho Hatori, do Cibo Matto, há uma levíssima citação a “Amigos Para Siempre”, sucesso de José Carreras, famoso nos anos 1990 por aqui. É muito sutil, quase imperceptível, oculta no dedilhado do violão que vai conduzindo a melodia. E a mágica dessa e de todas as apropriações do álbum está nisso – no detalhe, na reverência, na homenagem ao original. É tão bacana que vou deixar a própria Céu falar sobre as escolhas das canções neste faixa-a-faixa aqui embaixo.

 

 

Ao Romper da Aurora – Gravada originalmente por Ismael Silva
Álbum “Ismael canta…Ismael” (1957)

Samba de Ismael Silva, abre alas do meu disco, com esse fundador da primeira escola de samba do Brasil chamada “Deixa Eu Falar”. Grande compositor e cantor, que por curiosidade teve uma relação íntima com os meus pais, uma relação de amizade e de esperança. E eu acho que essa é uma canção de alguma esperança também. E para mim, além de lindíssima canção, trouxe o tom do que eu gostaria de trazer para o disco todo. Então por isso, abre o disco e também já antecipando o meu amor e carinho por coisas antigas brasileiras e pelo samba.

 

Teimosa – Gravada originalmente por Antonio Carlos e Jacofi
Álbum “Antonio Carlos & Jocafi” (1973)

A segunda canção traz um tipo de samba que só a Bahia, só os Soteropolitanos – Antonio Carlos e Jocafi – poderiam ter feito. Tem um traquejo, uma malemolência, um charme, que só a Bahia é capaz mesmo. Eu sou apaixonada por esses compositores e quis cantar letra que fala de teima, de ser teimosa – porque eu sou uma pessoa teimosa (Risos). E ainda tive o luxo de ter Russo Passapusso nos backing vocals, fazendo um falsete ali no coro. Eu sou muito fã de coros masculinos no falsete.

 

 

Chega Mais – Gravado originalmente por Rita Lee
Álbum “Rita Lee” (1979)

Puxa, eu tinha certeza que eu tinha que ter algo da Rita Lee. A Rita Lee é uma grande ídola, é uma referência. Ela é o retrato da cidade de São Paulo que deu certo. Onde a Pompeia – bairro que eu vivi um período com minhas grandes amigas – onde a Pompeia é mais rock, onde São Paulo é mais rock, onde as ideias vem em forma de gota de colírio alucinógeno (Risos). Porque o Brasil me obriga né? Enfim, Rita é mulher, é feminismo, é liberdade, é rock, é o Tropicalismo, e é extremamente brasileira também.

 

I Don’t Know – Gravado originalmente por The Beastie Boys
Álbum “Hello Nasty” (1998)

Bom, quando eu comecei a me descobrir como compositora, eu tinha 18 anos e tava passando uma temporada em Nova York. Eu tenho a impressão de que eu era vizinha do MCA, dos Beastie Boys, ali no Lower East Side, porque eu o via todo dia de patinete de tarde, de noite, de dia. E eu já era muito fã de Beastie Boys naquela época então eu ficava com aquele olho de curiosidade. E depois que eu gravei essa canção é que eu descobri que exatamente naquele ano de 1998-1999, eles tinham retornado a Nova York para gravar o “Hello Nasty” – que é exatamente o álbum que tem a canção que eu gravei no disco. Eu achei isso muito curioso e fiquei feliz em trazer e enaltecer esse trio punk, que depois se descobriu no rap, brancos e judeus compondo uma bossa nova. Tem algo nisso que me atrai profundamente.

 

Deixa Acontecer – Gravado originalmente por Revelação
Álbum “Nosso Samba Virou Religião” (2001)

Bem, o pagode estourou no Brasil na década de 90. E não é para menos, os caras trouxeram o samba em outro formato, em um formato mais popular, romântico e pop. Eu amava. Eu gostava de dançar, eu gostava de cantar. Acho que foi uma das primeiras vezes que eu me revelei publicamente cantando. Foi quando eu tava em um ônibus, em Porto Seguro na Bahia, com vários adolescentes da minha idade. A gente tinha uns 15-16 anos. A gente estava numa excursão e começou a cantar. Tinha um microfone aberto no busão e eu cantei várias músicas do pagode. Eu queria muito trazer alguma coisa do pagode pro álbum, e o mais incrível de tudo é poder ter um feat do meu ídolo maior, um cara de extrema importância para a revolução social que o Brasil tem que fazer, porque a gente tá ainda no capitulo um. Mas eu acredito muito toda vez que eu escuto esse cara, que é o Emicida. Imagina a honra pra mim dividir um track com esse cara, e ainda numa canção extremamente popular, extremamente brasileira, que todo mundo reconhece. Quantas vezes eu já cantei essa música, quantas vezes eu já ouvi versões dessa música. Então eu me permiti trazer um pouco da minha versão, junto com o Emicida.

 

Salobra (Interlude)

Eu sempre flertei com os beats, né? Então quis trazer o DJ Nyack que é referência, que é um cara que eu me aproximei na pandemia por conta do Laboratório Fantasma, que virou um amigo, uma pessoa que eu quero perto. Sou muito fã desse cara. Um alto conhecedor de música brasileira e de música mundial, de DJ. Ele fez esse beat e eu botei uns vocais em cima. Eu achei interessante manter essa minha linhagem de trazer beats, porque eu faço isso desde sempre. E esse disco é um disco todo orgânico, mas eu sempre gosto de colocar umas vinhetinhas, e costurar. E, dentro dessa vinhetinha, eu achei que tinha espaço pra beat.

 

 

Feelings – Gravado originalmente por Maurice Albert
Álbum “Feelings” (1975)

Feelings foi a música polêmica, vamos dizer. Porque ela é icônica, uma música que explodiu, que tem versões desde The Offspring até Nina Simone; e o mais curioso, é que é de um brasileiro, rs. Ela tem uma coisa cafona assim, mas ao mesmo tempo linda (justamente pela cafonice). Eu sou uma pessoa que prezo muito pela cafonice. Eu gosto. Eu acho que são nesses momentos que a gente é mais a gente. E eu tinha uma briga particular com essa música porque teve um evento onde eu queria dormir em casa porque eu tava com meu bebê pequeno e tava tendo uma festa e o povo não parava de cantar muito alto essa música, rs. Então eu fiquei com bode, mas ao mesmo tempo eu gosto dessa música por ela trazer de maneira linda e perfeita os clichês todos. E é muito curioso que é um brasileiro que fez. Então a gente testou ela e no final a gente amou.

 

 

Um Gosto De Sol
Gravado originalmente por Milton Nascimento                                                                                                                  Álbum “Clube da Esquina” (1972)

Bom, essa é uma canção grandiosa dos gênios, dos grandes, Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. Eu já conhecia essa canção mas quando eu reescutei com atenção, caíram lágrimas pela potência estrutural, harmônica, melódica e de letras. Eu quis trazer uma música com uma densidade, num tempo atípico, e me permitir me desafiar cantando algo dessa grandeza. Eu fiquei muito emocionada com tudo que aconteceu no estúdio no momento dessa gravação, com o que a música é capaz de fazer. Eu acho que o Pupillo também trouxe referências do Naná Vasconcellos, o grande Naná Vasconcellos; percussionista, parceiro do Milton. Enfim, foi muito emocionante. E leva o nome do disco que tem a ver com toda a história por trás.

 

 

May This Be Love – Gravado originalmente por Jimi Hendrix
Álbum “Are You Experienced” (1967)

Eu sempre fui dada às canções do Jimi Hendrix em que ele canta. Eu acho a voz dele linda. Acho o jeito que ele canta lindo. Eu acho as melodias — a gente não precisa ficar falando do Jimi Hendrix porque todo mundo sabe do brilhantismo dele. Mas esse lado cantor e cancioneiro dele sempre achei muito pop, muito lindo. E queria trazer uma canção dele com essa psicodelia, em que eu também me reconheço em alguns momentos.

 

 

Bim Bom – Gravado originalmente por João Gilberto
Álbum “Chega de Saudade” (1959)

Bom, o João Gilberto faz parte do cancioneiro brasileiro, da genialidade da música brasileira, e eu queria muito trazer algo dele. Ele não fez muitas canções, ele fez algumas poucas – as poucas que ele fez, eu gosto muito, e essa é uma delas. Ela tem essa coisa haicai. Muito simples, letra pequena, e ao mesmo tempo tão brasileira – que eu amo. Tão singela, e ao mesmo tempo, grandiosa. E a gente fez um arranjo que enaltece a batida dele, eu acho que o Pupillo se guiou muito para fazer a bateria dentro da própria batida do violão do João. A gente se divertiu muito fazendo os coros. Enfim, foi muito gostoso.

 

 

Paradise – Gravado originalmente por Sade
Álbum “Stronger Than Pride” (1988)

Sade Adu é uma referência enorme. Meu pai sempre fala que ele acha que eu comecei a cantar por causa dela. Por que ele lembra exatamente o dia que ele me deu “Love is Stronger Than Pride” e eu fiquei trancada no quarto escutando. Acho que foi através da Sade que eu tive contato com outro tipo de fazer música. Antes tudo era dentro de um formato muito intérprete no Brasil, isso dentro do meu conhecimento porque eu era muito pequena, devia ter 10 anos. Mas sempre tinha essa coisa muito do Brasil, muita bagagem – harmônica, melódica, profunda. Tinha muitos saberes das músicas que eu conhecia do Brasil e de repente chega uma mulher lindíssima cantando as coisas da vida e compondo, meio que sendo uma banda mas não era um banda, era ela. Mostrando a possibilidade de um outro mundo cantando com um timbre mais quente, mais baixo, mas ao mesmo tempo com muita personalidade, e potência também. Então, isso me cativou profundamente e eu queria trazer algo dela. Acabei escolhendo essa icônica que é “Paradise” – super desafiadora, afinal isso é um hino mesmo. Mas era isso, eu me abri a brincar com as canções e tirar elas dos lugares de ícones e botar elas em outros formatos. Afinal, eu sempre acreditei que música é para a gente cantar. Sade na veia.

 

 

Sons De Carrilhões (Interlude) – Gravado originalmente por João Pernambuco
Álbum “Sons de Carrilhão” (1926)

Sons de Carrilhões é um clássico do violão brasileiro. Eu escutei muito isso em casa – meu pai sempre foi muito dessa erudição brasileira, do choro, de todos esses estudos para violão acústico brasileiro. Quando a gente viu o Andreas aquecendo a mão e estudando Sons De Carrilhões, a gente se emocionou, e eu falei: “Andreas, vamos fazer uma vinheta disso daí!” E aí eu juntei o DJ Nyack, como eu falei lá no começo. Eu queria fazer vinhetas trazendo beats, e aí o Nyack fez essa interpretação.

 

 

Pode Esperar – Gravado originalmente por Alcione
Álbum “Alerta Geral” (1978)

A Alcione, na minha opinião, é a maior cantora do Brasil de longe. É uma potência. É indescritível. Não só como voz, mas como mulher, com toda potência da feminilidade que ela traz. Rasgada. Eu acho que como mulher eu me vi na fala dela, nessa letra, e me emocionei. Eu não conhecia essa música; eu conhecia o disco, e algumas do disco, mas não conhecia essa. Quando eu ouvi eu me apaixonei muito pela música. Fiquei no repeat durante a pandemia, ouvindo direto, e quis gravar mais um samba da potência e da grandeza da Marrom.

 

 

Criminal – Gravado originalmente por Fiona Apple
Álbum “Tidal” (1997)

A Fiona Apple chegou assim, dando aquele nó na cabeça. Transgredindo a coisa da artista rock que toca piano. Piano é um instrumento que na minha cabeça, quando ela chegou em 1995, era uma coisa meio clássica. E chega aquela menina com aquela pegada rock. Linda e forte. Magra com a voz grave e potente, poetisa mas com muita raiva. Contando das questões do feminismo, do masculino, e do feminino. Se colocando no lugar de má porque aprontou com um bom menino, e então isso me impactou. Gosto de sempre saber o que ela ta fazendo, o que ela tá falando – me conecto com a arte da Fiona Apple.

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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