“O Dilema das Redes” é obrigatório

 

 

O documentário “Dilema nas Redes” (The Social Dilemma, 2020) está disponível na Netflix desde o início do mês de setembro. Toneladas de textinhos e textículos têm surgido recomendando ou desabonando o longa, produzido pelo próprio serviço de streaming. A razão principal é bem simples: as redes sociais deram errado, gente. Desde o início dos anos 2010, com o boom de twitter, instagram, facebook e demais plataformas de relacionamento social, a humanidade foi afundando gradativamente na maré de likes, nas curtidas por quantidade, na falta de ética, na absoluta ausência de noção sobre o que é e o que não é verdadeiro, dando ensejo à prática exacerbada de propagação de fake news e, a partir disso, colocando a sociedade em risco. Além disso, o descaso pelo meio ambiente, o negacionismo, a burrice propagada, a falta de mecanismos reguladores e a própria ganância dos empresários do setor são fatores que completam o cenário caótico e distópico. E nada disso é achismo, a produção traz depoimentos de ex-empregados destas plataformas, além de estudiosos e professores, comprovando o sentimento de “danou-se” que toma conta do espectador.

 

As alegorias utilizadas no longa vêm de dois pontos cinematográficos recentes: “O Show de Truman” e “Matrix”, dois filmes que mostram cenários em que o ser humano, em plano privado e coletivo, é manipulado sem ter ideia de que isto ocorre. Seu comportamento, suas atitudes, suas crenças, suas falhas e virtudes, tudo é explorado por um sistema onipresente, que determina suas ações e reações, configurando a máxima de que a prisão mais eficiente é aquela invisível. A premissa é de que, ao usarmos as redes, somos manipulados por sistemas programados por algoritmos, entidades matemáticas com o propósito de documentar nossas preferências e simpatias, transformá-las em códigos e passar adiante, como se fossem impressões digitais tiradas à nossa revelia. Tais dados, pilhas e pilhas de bytes, se constituem então numa mercadoria valiosíssima, a qual é vendida e/ou acessada por companhias que usam nossos dados para oferecer o que “nós queremos” ou, pior, nos conduzir ao que elas querem. O resultado é este mundo que aí está, esta Terra harmoniosa e ética.

 

As questões mais aterradoras que o documentário apresenta residem na aplicabilidade da ética. De acordo com vários depoimentos, os algoritmos não têm hesitação ao oferecer vídeos, sites, produtos de qualquer natureza. Sendo assim, se você é fã de tiroteios, terá acesso a várias informações sobre o assunto. Se você é pedófilo, os sistemas agirão do mesmo jeito. Se você é terraplanista, terá como entrar em contato com outros que “pensam” da mesma forma, ou seja, não há qualquer tipo de filtro para impedir a propagação de ideias criminosas, reprováveis, ilegais. Assim como não há qualquer filtro para impedir a disseminação das mentiras, das notícias falsas. A partir daí, somos, sim, produtos na prateleira, prontos para sermos manipulados e usados para fins alheios, colocando em risco a representatividade/lisura das eleições, das ações de governos, das tentativas de unir as pessoas em prol de algum objetivo válido.

 

Além disso tudo, enquanto as empresas do setor de informática lucram astronomicamente, elas negociam sem dó os dispositivos que nos fazem ficar cada vez mais tempo presos e dependentes das redes. E tal situação já afeta todos os aspectos do ser humano. Uma geração está crescendo com muito mais problemas e vulnerabilidades, com bem menos noção da relevância das coisas, com cada vez menos capacidade de socialização e aceitação das suas individualidades. E a lista de agruras e motivos para preocupação é infinita e segue em pleno crescimento.

 

Claro que a tecnologia é importante e decisiva para nós. Sabemos disso desde que alguém usou o atrito das pedras pra criar o fogo. O problema é a lógica capitalista neoliberal em operação no mundo, que justifica absolutamente tudo em nome do lucro constante e desprovido de preocupações de qualquer espécie. Os especialistas entrevistados usam o termo “capitalismo de vigilância” para definir a ação que está em curso, objetivando nossa atenção e vendendo nossos dados para empresas tirarem vantagem das nossas ações online e, sem que saibamos, nos levar aonde querem. Todos são unânimes em admitir nossa situação como irreversível e dão prazos curtos para ferrarmos uns aos outros e ao planeta de forma definitiva, mas acenam com uma possibilidade: que nos unamos, modifiquemos o modo como vivemos, que passemos a dar importância maior uns aos outros, que abramos mão da lógica do lucro incessante e vivamos num mundo que enxerga mais valor numa árvore viva do que numa árvore derrubada.

 

É difícil, né? Mas acho que dá, se todos quisermos e precisamos começar ontem. Vejam, é importante.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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