Alice In Chains e o Inferno Grunge

 

 

No show de boas-vindas para 1993 organizado e transmitido pela MTV estadunidense, a Alice in Chains participou com três músicas. A última delas foi “Them Bones”. Entremeando os votos de “feliz ano novo” dos apresentadores, a banda de Seattle cantava sobre a finitude: “Me sinto tão só / Vou acabar numa grande pilha de ossos”. 

 

Alguns dias depois, a Alice in Chains desembarcou no Brasil para participar do Hollywood Rock. No show do Rio de Janeiro, seu som infernal ajudou a aumentar ainda mais o calor naquela noite de verão. “Them Bones”, que também esteve no set list dessa apresentação, é a faixa de abertura de Dirt, cujo lançamento completa 30 anos em 2022.

 

Dirt é o segundo LP da banda então composta pelo vocalista Layne Staley, pelo guitarrista Jerry Cantrell, pelo baixista Mike Starr e pelo baterista Sean Kinney. O quarteto se formara em 1987; algumas demos e muitas apresentações depois, assinou contrato em 1989 com a Columbia, que investiu na Alice in Chains fazendo sua parte nas apostas no “som de Seattle”.

 

Facelift, o primeiro LP, sai em 1990. Seu produtor, Dave Jarden, é o mesmo que se encarregaria de Dirt. Apesar dessa continuidade, há várias diferenças entre os álbuns. Escutando o que a banda colocou em Dirt, Facelift parece menos coeso, expondo as múltiplas influências herdadas pela Alice in Chains.

 

Em seus inícios, quando ainda se chamava Diamond Lie, o quarteto cultivava uma estética semelhante ao Poison. Isso mesmo: mais uma banda de “hair metal”! As referências mais amplas vinham basicamente do metal clássico (Black Sabbath, Deep Purple, Led Zeppelin, etc) e do hard rock (Aerosmith, Van Halen). A ascensão do Guns n’ Roses foi seguida com atenção.

 

Havia mais, como o country e o pop de Elton John, como Cantrell confessaria adiante. Como hard funk, o que se percebe nos grooves que preenchem algumas das primeiras composições. E até mesmo algo do pós-punk, permitindo aproximações com a síntese atingida pela Jane’s Addiction, banda também produzida pelo conterrâneo Dave Jerden. Lá por 1988, como nos conta David de Sola, a Alice in Chains prometia um “rock’n’roll fácil, blueseiro, durão e direto”.

 

Há algo disso tudo em Facelift, de onde se destacou a faixa “Man in the Box”, turbinada pela super veiculação do clip na MTV e escolhida para encerrar as apresentações no Hollywood Rock de 1993. E há também várias pistas (chequem “Bleed the Freak”, “It Ain’t Like That” e “Confusion”) que acenam para os rumos que a banda tomaria em Dirt. O metal continuaria como a referência básica. Mas as levadas de bateria ficam mais quebradas. Nos riffs, há uma desaceleração que abre caminho para novas sonoridades.

 

Detalhe importante: entre Facelift e Dirt temos a divulgação de um EP com cinco músicas, também de 1992. Seria exagerado rotular SAP como acústico, mas certamente aí a banda soa diferente, destacando as habilidades vocais de Staley e as harmonias produzidas pelos instrumentos. Cantrell, que já fazia backing vocal, ganha mais protagonismo. O dueto das vozes será outro elemento crucial de Dirt.

 

SAP expõe também as colaborações com outras bandas de Seattle. Em uma das músicas, há participações de Chris Cornell, da Soundgarden, e de Mark Arm, da Mudhoney. Em outras duas, aparece a voz de Ann Wilson, da banda Heart, talvez o principal representante local do hard rock oitentista. O EP foi gravado no London Bridge Studios, de onde saiu também o primeiro álbum da Pearl Jam.

 

No mesmo estúdio foi registrada a contribuição da Alice in Chains para a trilha sonora de Singles, filme de Cameron Crowe que acompanhou o hype em torno do “som de Seattle”. Aliás, a banda aparece se apresentando em uma sequência do filme. A faixa que consta da trilha sonora é “Would?”, composta por Cantrell e dedicada ao vocalista da Mother Love Bone, Andrew Wood, que morrera em 1990 após uma overdose.

 

“Would?” é a música que encerra Dirt. As demais onze faixas foram gravadas, a partir de abril de 1992, no estúdio One to One, em Los Angeles, mesmo lugar escolhido pelo Metallica (aliás, outra referência para a Alice in Chains, ao lado do Megadeth) para produzir o Black Album. A produção continuou até julho no estúdio de Jerden, o El Dorado, também nas redondezas de Los Angeles.

 

Dirt foi lançado em setembro de 1992 e foi saudado nas críticas. No Grammy Awards de 1993, o álbum foi indicado para Best Hard Rock Performance. Com a mesma formação (exceto pela entrada de Mike Inez no lugar de Mike Starr, cuja última apresentação ocorreu nos shows do Hollywood Rock), a banda gravaria ainda mais um EP (Jar of Flyes, 1994) e um LP de estúdio (Alice in Chains, 1995). Dirt destaca-se como o ponto mais alto desse trajeto, que inclui ainda o MTV Unplugged (1996).

 

Quando a Alice in Chains voltou ao Brasil em 2013, já com outra formação, Dirt serviu de base para o repertório da apresentação no Rock in Rio. Em um ranking divulgado em 2019 pela Rolling Stone, ele figura nos primeiros lugares na lista dos “50 Melhores Álbuns Grunge”.

 

Dizer “grunge” não é dizer tudo sobre um álbum que dispensa fórmulas. Estruturas engenhosas costuram músicas que combinam acentos pop com explorações nada óbvias. O resultado continua soando arrebatador.

 

“AAhh!!” Assim espoca “Them Bhones”, a voz de Staley rompendo o ar junto com o riff pesado de Cantrell, seguidos de perto pela bateria de Kinney e o baixo de Starr. O refrão soa bem hard rock e o guitarrista manda o primeiro de vários solos no álbum.

 

“Dam that River” é um rockaço, mas com timbres que o fazem combinar muito bem com o que há de mais emblemático em Dirt.

 

“Rain When I Die” começa como se saísse de um filme de David Lynch. Um som de avião voando baixo, carregado de bombas, prepara o faiscante miolo da música e se encarrega também do encerramento. Seis minutos na montanha russa.

 

“Down in a Hole” é o que mais se aproxima de uma balada em Dirt, mas a guitarra de Cantrell a torna envenenada e farpada.

 

“Sickman” oscila entre uma levada tribal claustrofóbica e uma valsinha blues assombrada. No meio disso, uma espécie de opereta com vozes endiabradas ao fundo.

 

“Rooster” volta a diminuir o volume em sua parte inicial, acústica, mas explode eletricamente no refrão. E segue embalada no marcante riff de Cantrell.

 

Em “Junkhead” predominam tons graves, como se estivesse pregada ao chão. O refrão faz um contraponto, juntamente com o solo, apontando para o alto.

 

“Dirt” é totalmente feita da costura da voz mântrica de Staley com a guitarra arrastada de Cantrell, uma da assinaturas da banda. Considerando os set lists da Alice in Chains, está entre as composições mais antigas do álbum.

 

“God Smack” é outro rockaço, expelindo enxofre pelos poros. O refrão frenético junta a bateria irrequieta e a guitarra em wah-wah.

 

“Hate to Feel” é antecipada por uma vinheta – podemos imaginar – de filme de terror. Mais mantras de vocal e guitarra, muito blues, até uma passagem quase jazzística, abrindo caminho para a investida feroz que leva ao refrão. O final é catártico.

 

O contraste é enorme com as duas faixas de fecham o álbum, “Angry Chair” e “Would?”. Nelas, a base de baixo e bateria se destaca, as guitarras deixam mais espaços (até os solos são mais discretos). Semelhanças com estruturas pós-punk. Ambas têm climas envolventes, ganhando intensidade em certos trechos.

 

Esses climas de “Angry Chair” e “Would?” as elegerão para receber as versões apresentadas no MTV Unplugged, ao lado de “Rooster” e “Down in a Hole”. As mesmas quatro músicas de Dirt, além de “Them Bones”, foram lançadas como singles e vídeos, entre 1992 e 1993. Faixas de Facelift e SAP pegaram carona nos lados B desses singles, com a banda atraindo um público maior nos anos de glória do grunge. 1993 é também o ano da participação no então ainda itinerante Lollapalooza.

 

A sonoridade quente de Dirt fica anunciada na capa do álbum, que simula um deserto no qual desponta o empoeirado corpo de uma mulher. Poderia ser o cartaz de um filme de terror. O deserto californiano, aliás, foi o lugar para onde o quarteto se mandou logo depois do início das gravações. É que em abril de 1992 ocorreram os quebra-quebras que sacudiram Los Angeles. Quando retomou os trabalhos, a banda imprimiu em Dirt algo desse clima de convulsão social.

 

Mas nas letras das doze faixas, compostas por Cantrell e/ou Staley, predominam temas pessoais. Parecem um diário repleto de confissões e visões sobre esses temas. Entre eles, o que mais se destaca é a experiência com drogas.

 

Na verdade, drogas estão diretamente presentes em apenas duas ou três das letras (“Junkhead”, “God Smack” e, plausivelmente, “Sickman”). Os assuntos vão além, como a mortalidade (“Them Bones”, “Would?”) e relações afetivas (“Rain When I Die” e “Down in a Hole”, com mulheres; “Rooster”, onde Cantrell tenta se reaproximar do pai).

 

Ocorre que, no geral, mesmo não sendo monotemáticas, as letras exalam frustração e incerteza. Desse ponto de vista, todas estão afetadas pela experiência com drogas, especialmente a de Staley com a heroína, experiência que o levaria à morte em 2002, após sucessivas tentativas de desintoxicação.

 

Dirt é o registro do momento em que Staley oscila entre a curtição e a perdição. Se “Junkhead” celebra os “stoners, junkies and freaks”, em “Angry Chair” o chão já parece ter sumido (“Serenity is far away”).

 

O fato é que o quarteto que compõe e grava Dirt parece estar muito distante dos caras que, pouco anos antes, tinham Poison como inspiração e cultivavam o sonho festivo do “sexo, drogas e rock’n’roll”. Nenhuma corrente foi capaz de segurar as infernais ressacas.

 

Não que fossem figuras angustiadas. Não aparentavam ser, diferente dos casos de um Eddie Vedder ou um Kurt Cobain, que desconfiavam do sucesso que subitamente gozavam. No caso de Staley, o sucesso serviu para comprar a decadência, algo a que Cantrell finalmente não se rendeu, apesar de sua história familiar complicada.

 

A referência a outras figuras da cena de Seattle serve de gancho para situar a Alice in Chains no contexto do grunge. A banda de Cantrell e Staley não apenas deriva do metal, como a Soundgarden e a Pearl Jam, mas se manteve nas suas vizinhanças.

 

Em 1991, o quarteto viajou com a tour da Megadeth e participou das excursões da Clash of Titans, em que os gigantes eram Anthrax e Slayer, além da Megadeth. Aliás, o vocalista do Slayer é a única participação especial em Dirt, na vinheta que antecede “Hate to Feel”.

 

Em seguida, a Alice in Chains pegou carona em uma tour com o Van Halen. Em 1992, foi a vez de acompanharem Ozzy Osbourne – com quem tocava Mike Inez, que irá substituir Starr no baixo em 1993.

 

No mesmo ano, a banda abriria para o Metallica, se os problemas de Staley não tivessem se agravado. Mais adiante, uma turnê com o Kiss também teve de ser interrompida pelos mesmos motivos.

 

Essa convivência com monstros do metal, além de realizar sonhos de adolescência dos quatro rapazes de Seattle, trazia grandes desafios. A Alice in Chains foi várias vezes hostilizada pelo público headbanger. De fato, apesar de não merecerem o que lhes era atirado, havia sim uma distância em seu som em relação ao que se fazia em várias vertentes do metal. Já não serviam aos mesmos demônios…

 

Dirt é exatamente o registro da via que a banda encontrou partindo do metal. A Alice in Chains fundiu a base blueseira a um peso que costura sonoridades incomuns. Um peso que tampouco relega as estruturas melodiosas. Mas que não deixa de ser claustrofóbico, furioso, intenso, infernal. Em uma palavra, sujo.

 

Essa realização garante a Dirt um lugar certo no panteão do grunge, ao lado de Badmotorfinger, de Ten e de Nevermind. Fica a dica: celebre o ano novo com a escuta dessas quatro obras primas.

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *