A distopia com ironia do Mundo Livre S/A

 

 

Mundo Livre S/A – Walking Dead Folia

Gênero – Rock alternativo
Duração: 49:12 min
Faixas: 11
Produção: Fred 04
Gravadora: Estelita

4 out of 5 stars (4 / 5)

 

 

 

Quem ouviu “Livre Iniciativa” lá nos idos de 1994, sabe – ou deveria saber – que o Mundo Livre S/A é uma banda essencialmente política. Aliás, a prova está no próprio nome do grupo liderado por Fred Zeroquatro. Por isso não deve causar espanto nos fãs a audição deste novo “Walking Dead Folia”, o décimo álbum da trupe, lançado semana passada e que aprofunda ainda mais este discurso engajado e extremamente ácido que o grupo cultivou ao longo do tempo e que, à medida que as condições do país exigiam resposta dura, engajou-se definitivamente nos últimos anos de carreira. Assim como no álbum anterior, “A Dança dos Não-Famosos”, este novo trabalho dispara rajadas pesadas de munição contra o establishment sócio-político-cultural do país, deixando claro já na bela capa – desenhada pelo artista Wendell Araújo – do que irá tratar. A ilustração de Wendell mostra um velório acontecendo em meio a uma comemoração de carnaval, sendo que o defunto ostenta uma camisa amarela, com os dizeres “Sorria, você teve alta!” estampados. Nem precisava falar mais nada, certo?

 

Errado. Todo álbum do Mundo Livre tem kilotons de sonoridades interessantes s serem destrinchadas e aqui não é diferente. A fórmula do grupo sempre foi mais ampla do que contemporâneos de manguebeat, como Nação Zumbi, por exemplo, abrindo espaço para levadas próximas do samba, do reggae e do rock. Neste novíssimo disco, Zeroquatro parece se preocupar mais com o discurso, mas é uma impressão que se desfaz logo de cara, com “Necropolitano”, que mistura rock e viola, com acento eletrônico e moderninho, estampando os vocais característicos e enfadados de Fred, que parece sofrer a cada verso declamado, mas sempre com alguma ironia e olhar de “eu te disse, eu te disse”, como quem já via o desastre antes dele acontecer. O disco perpasse este espírito de alerta, mas nunca resvalando para o palestrismo, reservando-se um lugar de crítica e ironia apocalíptica. E o clima é esse, de um caos vivenciado no dia-a-dia mas que poderia ser evitado e, num efeito interessante, as músicas do álbum soam como avisos dados mas nçao ouvidos.

 

Os vocais de Zeroquatro, aliás, têm muita importância no decorrer das faixas, pois ele consegue espelhar exatamente o tom de escárnio/raiva com que acompanhamos o noticiário do país e do mundo. Algumas canções, como “Fake Milho” (foda-se o agro, foda-se o tóxico, foda-se o fake grão transgênico), por exemplo, têm a raiva e o protesto inserido no DNA, vindo à tona não em forma de gritos, mas de palavras proféticas. Em “Baile Infectado”, o single do álbum, Zeroquatro e sua turma usam um ritmo de embolada com cavaquinho para descrever um evento caótico em que as habilidades e características dos músicos e participantes vão assumindo características que variam e saem do âmbito musical e chegam na sociedade. Parece só dança, mas não é. Outro exemplo de mistura de sons e palavras que jogam em direções diferentes é “O Conselho (do Pastor Trans Para A Amante Miliciana)” em que a narrativa chega a ultrapassar o âmbito da realidade e adentrar um cenário surreal. Faz parte.

 

Em algumas canções o grupo acerta no alvo da objetividade, caso de “Usura Emergencial”, com um belo riff de guitarra pesado desaguando numa levada bacana. “Blue Gin e Os Seres de Vidro” também é bem legal, com uma construção ritmica quase pop rock noventista, com um bom trabalho de guitarras vocais de apoio. O disco ainda tem a participação de Doralyce, na autorreferente “Melô das Musas Empoderadas da Ilha Grande” e Jorge Du Peixe, na climática e psicodélica “Walking Dead Ciranda (A Maldição 2)”, com mais de oito minutos de duração e várias nuances bacanas de se achar nos fones de ouvido. Os vocais de Zeroquatro seguem como um híbrido de Jorge Ben e Raul Seixas, funcionando bem por todos os cantos.

 

“Walking Dead Folia” é um caleidoscópio de raiva, ironia, escárnio e falta de crença no futuro. É um raro exemplo de distopia colorida, talvez contraditória mas nunca imprecisa. É disco para se ouvir muitas vezes e destrinchar sentidos ocultos. Caia dentro.

 

Ouça primeiro: “Blue Gin e Os Seres de Vidro”, “Baile Infectado”, “Usura Emergencial”

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *