A força da estreia solo de Beth Gibbons

 

 

 

 

Beth Gibbons – Lives Outgrown
46′, 10 faixas
(Domino)

4.5 out of 5 stars (4,5 / 5)

 

 

 

 

 

O primeiro disco solo de Beth Gibbons chega ao público exatos trinta anos depois de sua primeira aparição, no caso, como vocalista do trio Portishead. Em 1994, “Dummy”, a estreia do grupo, surgiu no mesmo verão que teve “Parklife”, do Blur, e “Definitely Maybe”, do Oasis, mas nada tinha a ver com esses álbuns. A figura de Beth e, sobretudo, sua voz, assombrando as canções de “Dummy” é um dos grandes marcos dos anos 1990. O Portishead repetiria a dose em 1997, com um álbum homônimo e um registro ao vivo, gravado em Nova York, no ano seguinte. Beth ressurgiria num trabalho colaborativo com Rustin Man em 2002 e, cinco anos depois, voltaria a participar de um álbum do Portishead, “3”. E só. Em todos esses momentos, a imprensa, os fãs, todo mundo se perguntava quando ela faria um registro solo. Sempre aguardado, às vezes anunciado, este “Lives Outgrown” é, finalmente, esse momento em que Beth volta ao microfone, assume o protagonismo de sua música e apresenta ao público um pouco se seu universo sonoro, até então discretíssimo, misterioso, oculto. E o resultado, bem, o resultado é impressionante.

 

“Lives Outgrown” traz dez canções gravadas ao longo de um período de dez anos e tem a produção de James Ford (Arctic Monkeys, Depeche Mode, The Last Dinner Party), com pitacos da própria Beth e de Lee Harris. Certamente é seu momento mais pessoal e confessional, na verdade, um somatório de mudanças e reflexões sobre como a vida oscila enquanto os dias passam. Como a própria Beth disse: “é um trabalho que também fala sobre muitas despedidas”. Despedidas da família, dos amigos e até do seu antigo eu. “Percebi como era a vida sem esperança,” diz Beth. “E essa foi uma tristeza que eu nunca senti. Antes, eu tinha a capacidade de mudar meu futuro, mas quando você está contra seu corpo, você não pode obrigá-lo a fazer algo que ele não quer”. Além disso, Beth imprimiu uma tonalidade inegavelmente feminina ao longo das canções do álbum, abordando assuntos como maternidade, ansiedade e a menopausa (que Beth descreve como “uma auditoria massiva” e “uma queda massiva” que “corta você nos joelhos”), bem como, inevitavelmente, a mortalidade. Ela prossegue: “As pessoas simplesmente começaram a morrer”. E continua: “Quando você é jovem, você nunca sabe o final, você não sabe como isso vai acabar. Você pensa: vamos superar isso. Vai melhorar. Alguns finais são difíceis de digerir.”

 

Com esta certa perplexidade dos sobreviventes, as canções do álbum falam, em última instância, sobre emergir de mudanças e realinhamentos, sensação que traz uma espécie de renovação dos propósitos e um desejo de honrar o fato de ter permanecido. “Agora que saí do outro lado, só acho que você tem que ser corajosa,” diz ela. De fato, o álbum é audacioso e imprevisível, deixando o ouvinte sem condições de adivinhar o que virá na próxima faixa ou na próxima frase dos arranjos. O instrumental é acústico em sua maior parte, mas não entenda isso como um sinal de brandura, mesmice ou mesmo bundamolice, pelo contrário. Beth encara cada canção como um ajuste de contas consigo mesma ou com o passar o tempo ao qual nos referimos acima. Uma canção como “Beyond The Sun”, a faixa de número nove, consegue, em menos de quatro minutos de duração, trazer momentos em que a batida chega a lembrar os ritmos inventados por Bo Diddley, um artista que não esperávamos ver como influência direta de alguém como Gibbons. E isso surge como pano de fundo para um instrumental em que cordas, metais e andamento atingem um espírito entre o sublime e o mundano. E essa é só uma das passagens que o álbum apresenta.

 

“Floating On A Moment”, um dos singles, é uma lindeza oblíqua, propulsionada por baixo acústico, que vai incorporando frases, teclados, bateria, tudo numa progressão belíssima que vai levando o ouvinte a prestar atenção a todos os detalhes. “Lost Changes” já tem um andamento mais linear e chega a lembrar uma daquelas canções do Pink Floyd fase “Oscured By Clouds” ou algo do gênero, em que o arranjo folk vai incorporando detalhes aqui e ali e, quando nos damos conta, estamos bem longe de onde achamos que estaríamos. “Reaching Out” é outra canção sensacional, com um andamento rápido e apressado, que poderia comportar até um instrumental calcado no rock mais clássico, mas que faz sua jornada com cordas, percussão levíssima – que vai ficando mais pesada – e a voz de Beth, pairando como uma assombração. No fim do álbum, “Whispering Love”, como o nome já diz, é o momento em que todo o arsenal folk e surpreendente apresentado até aqui se volta para algo mais plácido, belo e mais convencional, porém jamais banal. Lembra algo que o Renaissance poderia gravar, num outro momento, de um outro jeito.

 

“Lives Outgrown” é um disco que tinha uma missão complicadíssima: fazer valer uma espera tão grande por um trabalho solo de Beth Gibbons. Depois desse tempo todo, a sensação que suas canções transmitem é de que, sim, valeu a pena esperar e muito mais. Um dos discos do ano.

 

 

Ouça primeiro: “Beyond The Sun”, “Reaching Out”, “Floating On A Moment”, “Whispering Love”

 

 

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

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