U2 em guerra contra a violência em 1983

 

 

Em 2022, Bono, vocalista da U2, lançou um livro de memórias. Os títulos dos 40 capítulos remetem a músicas da banda. Quarenta é também o número de faixas que a banda anunciou retrabalhar em um projeto que adentra 2023 – ano em que War completa 40 anos.

 

Todo álbum tinha dois lados (no início dos anos 80, os CDs ainda não existiam comercialmente…), mas no caso de War isso é válido em um sentido menos literal. Pois, ao mesmo tempo, é um álbum com uma ideia abrangente e com dificuldades para se manter coeso.

 

 

Desconstruindo War

 

Lançado em fevereiro de 1983, War é o terceiro álbum da banda formada por Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr., que começara seu trajeto com Boy (1980) e October (1981). Foi gravado em Dublin, no estúdio Windmill Lane, entre setembro e novembro de 1982.

 

 

Em meio à turnê de October, a banda buscou diferentes produtores para trabalhar novas composições. A ideia era que o terceiro álbum contasse com contribuições diversas, algo que poderia potencializar as qualidades do quarteto.

 

Afinal, o plano não deu muito certo. O mesmo produtor de Boy e October, Steve Lillywhite, seria chamado pela banda e por sua gravadora, a Island, para conduzir o registro de War. O mesmo Lillywhite havia colaborado em “A Celebration”, música lançada como single em 1982 e incorporada aos setlists do shows.

 

Apenas uma das faixas de War não teria a sua assinatura. “The Refugee”, produzido pelo também irlandês Bill Whelan, uma indicação do empresário da U2, Paul McGuinness, foi a única das experiências que chegou ao destino pretendido. Mas a proposta original era a de um álbum multiplamente conduzido.

 

Nenhuma das faixas de War aparece em shows anteriores a dezembro de 1982. Isso nos faz deduzir que foram definitivamente compostas no estúdio dublinense. Quando voltamos aos repertórios da turnê de War, o que vemos? Três músicas jamais foram incluídas e uma quarta consta apenas uma vez. É algo bastante enigmático para um álbum com dez faixas.

 

De fato, sonoramente, War atira em várias direções. Uma delas tem a ver com certo incômodo da banda com o tipo de pop que ganhava então espaço. Mais especificamente, new romantics como Culture Club e Duran Duran. A resposta vem com as guitarras ásperas que estão em várias faixas de War, incluindo “Like a Song”, a música mais feroz do álbum e que só foi executada uma vez nos shows da turnê.

 

Ocorre que, por outro lado, o que propulsiona a U2 depois de Boy e October é a busca por um som com mais alcance, algo que as três faixas excluídas dos shows demonstram. “Drowning Man” é uma balada quase acústica, fácil de cantarolar. O sax em “Red Light” é constrangedoramente eighties. Assim como a percussão e o vocal tribais em “The Refugee”.

 

As demais faixas de War confirmam a dispersão estilística, mas elas têm em comum atingirem um equilíbrio entre o que perseguem as quatro anteriores. “Seconds” sustenta-se no baixo groovy de Clayton e tem a primeira estrofe cantada por The Edge. “Surrender” é a que mais tem semelhanças com o pós-punk que combinava intensidade e ambiência cultivado pela banda em Boy e October.

 

“Two Hearts Beat as One”, que mereceu um vídeoclip e um single, está entre as mais pops do álbum, mesmo com a guitarra freneticamente funk. “Forty”, incluída às pressas para fechar War, destoa do que vem antes com sua celestial linha de baixo (nos shows, o instrumento era tocado por The Edge).

 

Finalmente, compõem War duas músicas excepcionais como exemplares de pop alternativo, que se tornaram marcas da banda. “Sunday Bloody Sunday” e “New Year’s Day” foram também destacadas em singles. Diferentes das demais faixas de War e entre si, são as principais razões que explicam o estrondo que o álbum causou.

 

 

War e seu amor furioso

 

Além de certo pop, havia outro incômodo que influenciou as direções de War, este muito mais poderoso, a ponto de nos permitir entrever as apostas que levaram a banda a atingir patamares mais altos em sua carreira artística.

 

É comum o contraponto entre os temas dos três primeiros álbuns da banda: Boy é uma elaboração sobre a passagem para a vida adulta; October está às voltas com questões religiosas; War é dominado pela política. Mas a política de War é sobretudo a resposta de uma banda de jovens inspirada por ideais religiosos.

 

A U2 deparou-se com as repercussões de algo diretamente ligado às questões políticas de sua terra. Em maio de 1981, Bobby Sands, um ativista do IRA (Exército Republicano Irlandês), grupo paramilitar que reivindicava a reunificação das Irlandas, morreu em decorrência de uma greve de fome que liderara na prisão onde estava detido.

 

A morte de Sands arregimentou simpatizantes da causa do IRA – e não apenas na Irlanda. Em shows da turnê de October pela Europa e especialmente Estados Unidos, não era raro que esses simpatizantes empunhassem bandeiras irlandesas. Como a banda responderia a isso?

 

Embora apoiasse a ideia de uma reunificação irlandesa e reconhecesse a opressão inglesa, a U2 discordava dos métodos terroristas do IRA e outras organizações paramilitares. Nos shows, quando uma bandeira irlandesa chegava ao palco, Bono cumpria um ritual: destacava as partes verde e laranja, fazendo tremular apenas a parte branca.

 

War dá sequência a essas reações. É um manifesto contra o ciclo vicioso da violência. Violência em todas as suas formas, não apenas as literais. É um apelo para a rendição. Rendição também considerada em um sentido religioso, como interrupção da violência e como aposta em novos recomeços – assim sugere a letra de “Surrender”, usando a morte para celebrar uma outra vida possível.

 

Ao mesmo tempo, intitulando o álbum com a palavra “guerra”, a banda recusava uma atitude passiva e resignada. Seria preciso militar contra a violência, subvertendo os símbolos da guerra. Musicalmente, urgia rimar o amor com raiva e fazer soar instrumentos com fúria.

 

Para a turnê de War, o palco foi montado com três bandeiras brancas e Bono aparecia vestido com botas e coletes militares. Para a capa do álbum, Peter Rowen, o menino que já figurara em Boy, foi novamente chamado. A expressão de seus olhos e seu lábio ferido provocam muito mais do que fotos de quaisquer dos conflitos então correntes em várias partes do mundo (Afeganistão, Malvinas, Oriente Médio, vários lugares na África…).

 

As letras de algumas faixas de War estão em direta sintonia com essa proposta mais geral. Especialmente “Like a Song”, lamento sobre lutas que dilaceram pessoas próximas. “The Refugee”, como o título indica, é sobre uma refugiada e suas esperanças. “Seconds” é um alerta sobre o risco da aniquilação atômica, incorporando trecho do áudio de um documentário sobre o treinamento de soldadas nos Estados Unidos.

 

Também em sintonia com a proposta mais geral, há canções de amor, como “Drowning Man” e “Two Hearts…” – esta última composta ainda no clima de lua-de-mel após o casamento de Bono com Ali (The Edge também se casaria em 1983). O amor vem associado à unidade e à persistência, em sintonia com visões religiosas.

 

“New Year’s Day” reitera a articulação entre o pessoal e o político. A letra começara como uma declaração de amor de Bono para sua esposa, mas evoca também outro casal, Lech e Danuta Walesa. Lech se tornara o líder de um sindicato na Polônia que ousou confrontar o Partido Comunista no início dos anos 80. Isso causou a prisão de Lech, privando-o de receber visitas até da esposa. Daí os versos: “Embora eu quisesse estar com você / estar com você noite e dia/ nada muda / no Dia de Ano Novo”.

 

Sonoramente, “New Year’s…” é uma preciosidade. A base é feita por Clayton, uma linha encorpada e envolvente, inspirada por uma música de dance pop-eletrônico. The Edge contribui tanto com uma melodia feita ao piano quanto com uma guitarra de sons marcantes. Nos shows, ele tocava ambos os instrumentos, alternando habilidosamente entre eles.

 

De todas as faixas de War, a mais afinada com as intenções mais abrangentes do álbum é “Sunday Bloody Sunday”. O “Domingo Sangrento” a que o título da música se refere é um trágico acontecimento na história da Irlanda do Norte. Em 30 de janeiro de 1972, a reação do exército inglês a uma manifestação pacífica na cidade de Derry vitimou com a morte 15 pessoas e feriu outra dezena.

 

A letra da música destaca flashes desse massacre, mas é também um apelo contra respostas violentas – como acontecia pelas mãos do IRA desde os anos 70. Assim, de um lado ouvimos: “Garrafas quebradas sob os pés das crianças / corpos espalhados pela rua sem saída”. E de outro: “Mas eu não vou atender a chamada para a batalha / ela coloca minhas costas contra a parede”.

 

Abrindo War, “Sunday…” é bombástica. O tempo em que Mullen passou na fanfarra militar se mostra com força e criatividade. A guitarra de The Edge, dialogando com o violino de Steve Wickham, colabora para a atmosfera marcial que a música transmite. Música que transpira energia sem abrir mão de uma construção engenhosa.

 

Nos palcos, em sintonia com a proposta de War, Bono várias vezes introduziu “Sunday…” com um aviso: “esta não é uma canção de rebeldia”. Mas, rebeldemente, marchava com uma das bandeiras brancas que decoravam o palco. Pacifismo militante.

 

A estrofe final é assim: “A verdadeira batalha apenas começou / para reivindicar a vitória que Jesus ganhou”. Embora uma interpretação na linha “Deus está sempre do lado que vai vencer” seja possível, há uma mensagem positivamente religiosa na intenção da letra. A ideia é contrapor a vitória de Cristo sobre a morte às guerras mundanas, evocando um evento (a Páscoa) cultuado tanto por católicos quanto por protestantes, grupos que em geral estavam em lados opostos na política irlandesa.

 

É preciso lembrar que a banda tinha uma composição religiosa diversa: o pai de Bono era católico e sua mãe, anglicana. Clayton e The Edge vinham de famílias protestantes; Mullen tinha pais católicos. Todos, com exceção de Clayton, eram pessoas devotas, embora a época de War consolide uma opção de fazer isso fora de organizações religiosas.

 

Mais de um livro existe sobre a relação entre as letras da banda e o cristianismo. Não é o caso de entrar em detalhes. Mas essa relação aponta para o sentido da menção a Jesus em “Sunday….”. Ela também permite entender o amor cantado em “Drowning Man” como o amor divino que salva.

 

A religião está escancarada em “Forty”, pois a letra é uma adaptação do Salmo 40 da Bíblia. Meio no improviso (mas que banda teria por perto uma Bíblia?) e com Clayton já fora do estúdio, compuseram uma canção de louvor. O refrão dessa faixa de encerramento reverbera a pergunta que está também na música que abre War: “Por quanto tempo cantaremos esta canção?”

 

 

Para o alto e avante

 

War foi um sucesso comercial, colocando a banda pela primeira vez no alto das paradas na Inglaterra (onde atingiu o primeiro lugar) e nos EUA (onde chegou ao 12º lugar). O single de “New Year’s Day”, lançado bem no início de 1983, antes do álbum, ajudou a pavimentar o caminho.

 

A U2 fez sua turnê com dois vídeos rodando na MTV e remixes de duas canções de War. Pela primeira vez se apresentou no Japão e no Havaí, mas o foco continuou a serem os palcos europeus (55 shows, incluindo uma pré-temporada em 1982 e os festivais de verão de 1983) e estadunidenses (47 shows).

 

A banda escolheu um lugar nos EUA para gravar em vídeo a apresentação. Nos arredores de Denver, tendo ao fundo de seu palco rochas gigantescas, o anfiteatro Red Rocks realmente impressiona. As condições climáticas que quase impediram que o show se realizasse acabaram conferindo ao lugar uma atmosfera mágica.

 

O vídeo é lançado apenas em 1984, mas trechos foram veiculados antes e ajudaram a tornar mais conhecida a sedutora performance da banda. Ainda em 1983, surge o primeiro álbum da U2 ao vivo (Under a Blood Red Sky). Embora as gravações tenham sido feitas em três shows distintos, as fotos da capa e contracapa vieram da apresentação em Red Rocks.

 

Tanto o vídeo quanto o álbum com músicas ao vivo confirmam, em seus números, o que comentei antes. Das oito músicas do álbum, apenas três são faixas de War (“Sunday…”, “New Year’s…” e “Forty”). Uma quarta (“Party Girl”) vem do lado B do single de “A Celebration”. O vídeo traz treze músicas, com apenas cinco de War.

 

Ao mesmo tempo em que War conferia uma identidade conceitual aos shows, o repertório do álbum era dissolvido, boa parte das faixas sendo dispensada e abrindo espaço para músicas dos outros álbuns e singles da banda. A seleção buscava produzir o máximo de efeito nos palcos.

 

Com exposição amplificada, a U2 portava armas fatais: um guitarrista de excepcional feeling, um vocalista que sabia interagir com o público, um baixo-e-bateria palpitante. Com War, o quarteto se municiou para ser o que seria alguns poucos anos depois: a maior banda de rock do mundo.

 

Ps1. Em seu livro de memórias, Bono nota que o quarto no qual começou a escrever músicas para War durante a lua-de-mel na Jamaica também havia sido o lugar onde Sting compôs canções de Syncronicity.

 

Ps2. Para quem leu meu texto sobre Boy, um detalhe do destino: notei que Alice Vermeulen – que depois se tornaria Alice Pink Pank, uma das Absurdettes da Gang 90 – teve uma contribuição como backing vocal em Boy. Já War conta com a participação de Cheryl Poirier, Adriana Kaegi e Taryn Hagey nos vocais de apoio em três faixas. As garotas eram as Coconuts. O curioso dessa história é que a banda das garotas, liderada por Kid Creole, serviu de inspiração para a Gang 90…

 

Emerson G

Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).

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