[Tim Maia + Public Enemy]² = DeFalla
Hollywood Rock, janeiro de 1993. Nas noites de shows em São Paulo e Rio, o primeiro dia da programação terminava com Red Hot Chili Peppers. E começava com DeFalla, banda que em 1992 lançara Kingzobullshitbackinfulleffect’92, ou mais simplesmente Kingzo.
No palco estavam o vocalista Edu K, que terminou o show coberto apenas com uma meia a meio pau, o baixista Flavio “Flu” Santos, o baterista Castor Daudt e o guitarrista Marcelo Fornazier, além de dois músicos de apoio.
Kingzo saiu em duas versões, originalmente em vinil e, no ano seguinte, em CD. As diferenças entre as versões, como veremos, vão bem mais além do formato. Um álbum de duas idades é perfeito para fazermos a passagem entre 2022 e 2023.
Outra razão: entre os dois lançamentos de Kingzo, um fato político importantíssimo ocorreu. Em meio a um processo de impeachment, o então presidente Fernando Collor de Mello renunciou em dezembro de 1992. 1993 começava com novos horizontes para o país, assim como ocorrerá em primeiro de janeiro de 2023.
Kingzo deveria constar em qualquer comentário sobre o que acontecia na cena musical rockeira no Brasil do início dos anos 1990. Que as comemorações (duplas!) de seus 30 anos sirvam de motivo para isso.
Tudo e mais um pouco junto e misturado
A história da DeFalla já tinha alguns bons anos, mas por ora partamos do ponto imediatamente anterior a Kingzo. Em We Give a Shit (1990), a banda enveredara por uma mistura de metal, punk e hardcore. Como a Ratos do Porão e sob a inspiração da Sepultura, a banda se apresentava como “crossover”.
Com Kingzo, a DeFalla mantém o metal, o punk e o hardcore, mas injeta em sua sonoridade funk, rap, samba, raggamuffin, eletrônica e rock pop-psicodélico-sessentista-setentista. Isso sim era “crossover”!
O inglês foi mantido como língua dominante nas letras, mas duas faixas apostavam no português. Desde o primeiro álbum, a DeFalla misturava inglês e português, mas nos dois anteriores a Kingzo tinha recorrido apenas ao inglês, como aliás fez uma geração de bandas brasileiras na passagem para os anos 90.
Nas misturas e no idioma, Kingzo prenuncia o que vai acontecer na cena rockeira dos anos seguintes. É preciso lembrar que em 1992 nenhum dos grandes nomes dessa cena havia ainda lançado um álbum. E pelo menos uma delas, a Planet Hemp, simplesmente não existiria sem a DeFalla.
Naquele Hollywood Rock, essa força profética estava embaçada por uma performance que lembrava Red Hot Chili Peppers, ainda mais quando a banda incluía em seu set a execução de “Give it Away”. A DeFalla estava muito além dessa referência, pois era capaz de juntar coisas que nem passavam pela imaginação de Kieds e companhia.
Houve certo reconhecimento na época, como mostra a eleição da revista Bizz de melhores do ano, com Kingzo alcançando, para os críticos, o primeiro lugar entre os álbuns nacionais de 1992.
Mas, poucos anos depois, Kingzo viraria peça de colecionador, a frente já tomada por bandas mais jovens, amparadas por manifestos e – fator decisivo – cantando totalmente em português. Também não colabora para as devidas memórias o fato de o álbum até hoje não ter sido lançado em plataformas digitais.
21 ou 24 faixas
Kingzo é o quinto álbum da DeFalla, banda então em sua quarta formação. Edu K, Flu e Castor estavam juntos desde o primeiro álbum, de 1987, gravado pela segunda formação. Dela fazia parte a fabulosa baterista Biba Meira, que deixou a banda em 1989.
No mesmo ano, aproximando-se do hard rock e do metal, a DeFalla lança Screw You!, gravado ao vivo em São Paulo, pela Devil Discos. Com o ingresso de Marcelo Truda na guitarra, Castor assume as baquetas. A identificação com o metal propicia um contrato com a Cogumelo, de Belo Horizonte, por onde saiu o já mencionado We Give a Shit, com a banda retornando à formação de trio.
Em 1991, ocorre nova mudança com a entrada de Marcelo Fornazier na guitarra. A DeFalla podia contar com três guitarristas, pois Castor e Edu também empunhavam o instrumento. Fornazier, no entanto, era o mais virtuose, “músico de verdade”, como o descreve Flu. Começara sua trajetória em um banda de metal, mas transitava por outros gêneros, o que lhe rendeu muitas colaborações com artistas gaúchos.
Como um quarteto, a banda testa seu entrosamento em um estúdio de Porto Alegre, onde grava uma fita demo, Megablasts from Hell. A maior parte das faixas são versões de músicas de bandas estadunidenses. Há também as primeiras versões de algumas músicas que vão parar em Kingzo, como se pode conferir em um registro ao vivo na capital gaúcha.
Kingzo é um álbum bastante heterogêneo. Se nele há uma influência mais coesa, ela vem do hip hop de bandas como Public Enemy e N.W.A. e de rappers como Ice T e Dr. Dre. Quatro das 19 faixas de Megablasts from Hell são versões de músicas da Public Enemy.
O rap já aparecia no primeiro álbum da DeFalla e persistia no segundo, mas em Kingzo ele é estruturante no vocal de Edu. Ele volta na versão de música preta injuriada, nervosa e envenenada por muitas guitarras que caracteriza a sonoridade das bandas citadas.
A vertente de metal predominante em We Give a Shit ainda dá suas caras em “Wrote My Name”. Uma das vinhetas de Kingzo, “Barker Meets Hendrix”, retoma a primeira faixa do álbum anterior. Em “The End”, um trecho da bateria de “Inner Self” do Sepultura é sampleado, junto com a voz de Jim Morrison.
Mesmo no lado mais metal do álbum, portanto, encontramos o processo de “corta-e-cola” que caracteriza a lógica do hip hop. No Brasil do início dos anos 90 não houve nenhum outro álbum na cena rock além de Kingzo que assumisse isso.
“Special Shout Out” é um rock quebrado que remete tanto a Public Enemy quanto a Red Hot Chili Peppers. “Mind Revolution” é um rap metal recheado de rap. “Insane” vai na mesma trilha, e ainda conta com uma inserção hardcore.
“Mony Mine” é outro rap metal, mas com refrão bem rock anos 70. Já “Slow Ride” nos leva ao psicodelismo sessentista, Edu esmerando-se em um vocal soul. As referências psicodélicas informam também a capa de Kingzo, com as cabeças do quarteto soltas entre cores berrantes e espiraladas.
Outro aceno para o passado, dessa vez da própria banda, é “It’s Fucking Boring to Death”, uma versão quase acústica, mas preenchida de teclados, de faixa do segundo álbum da DeFalla. O apreço pelas misturas já marca a banda desde o primeiro álbum, dissecado em livro totalmente dedicado a ele. Em certo sentido, Kingzo é uma retomada dessa pegada com muitos outros elementos à disposição.
A fórmula rap metal + funk + inserção hardcore funciona novamente em outra versão. “Satisfaction”, dos Stones, sai tão reelaborada quanto a versão new wave da Devo. Será que Jagger e Richards chegaram a conhecer essa reinvenção?
Isso aconteceu no caso de outra versão incluída apenas no CD de Kingzo: “Sossego”, de Tim Maia. O síndico contatou a banda e lhe presenteou com uma letra inédita, “Sai prá lá”, que Edu K musicaria em seu álbum solo.
Na leitura da DeFalla, “Sossego” tornou-se um funk com coralzinho hip hop. A letra é intercalada com um rap que Edu declama em inglês. Mesmo com a guitarra parecendo soar puramente funk, Edu comentou que a inspiração veio de trecho de uma música da Public Enemy. O tecladinho incidental reforça as raízes hip hop.
Muito parecida com a levada de “Sossego” é a de “Caminha (Q Aqui é de Osasco)”. Aliás, o funk também dá as caras na parte final de “Mind Revolution” e, mais discretamente, em outras faixas. Em “Caminha”, o hardcore volta a aparecer para temperar a levada altamente sacolejante.
Se desconsiderarmos a vinheta “Glauco Tatoo”, uma homenagem ao tatuador da Guarda do Embaú, Santa Cantarina, é a única faixa totalmente cantada em português. Segundo Edu, “a letra é sobre a ganguerage de Osasco, que era nossa turma em SP… eu falo um pouco de cada mano”, incluindo Rodrigo Carneiro, vocalista da Mickey Junkies.
O restante das composições está recheada de sacanagens, fuleragens, camaradagens, com destaque para os versos em que Edu consegue fazer rimar “ass” e “conscientiousness”!
Ainda nas vinhetas, temos também “Zipp Zepp”, loop que mistura uma linha de teclado à batida sampleada de “Justify my Love” (isso mesmo, da Madonna), “No Problem!”, com a voz de João Eduardo da Cogumelo, e “Get da Groove, Babe (If U Can!)”, que parece sobrepor várias músicas e entrou apenas no vinil.
Não apenas o número de faixas é diferente quando se compara as versões vinil e CD de Kingzo. Sua ordem também foi modificada, com as primeiras músicas do CD chamando a atenção para os elementos mais inovadores do álbum em suas composições-apropriações.
Se em Megablasts from Hell, não há bases eletrônicas, elas abundam em Kingzo. Na versão em vinil, Gauguin, o assistente de gravação da Cogumelo, teve algum papel na produção junto com a banda. Para a versão em CD, o protagonismo passou para as mãos de Edu e de Vicente Rubino.
Rubino dominava as tecnologias eletrônicas disponíveis e com Edu refez várias das bases para a versão em CD de Kingzo. Esse trabalho fica bem evidente quando se compara as versões de “Satisfaction” em Megablasts (com bateria acústica) e em Kingzo (com samplers e bateria eletrônica).
Por essas razões, “Culo Fuck (In Full Effect)” ganha três versões. Em Megablasts, predomina o rap metal. No vinil, o vocal já é diferente, mas a bateria acústica não é abandonada, algo que ocorre no CD, no qual as alterações já aparecem no início. Um sample da bateria de “Óculos” da Paralamas confere um tom mais caribenho à música, dando sentido ao clima de “festa mexicana” que já existia desde a primeira versão.
Algo semelhante ocorre com “Slaughthouse”, que assume as mudanças no próprio título da faixa em suas três versões (confira a primeira delas aqui). Estruturalmente, a música é a mesma, mas os detalhes fazem a diferença, como o sample de gemidos de filme pornô no início e a ênfase nas passagens entre o hip hop e o metal (inclusive nos vocais). As variações não param aí, pois ao final temos um raggamuffin!
O raggamufin volta a ocorrer, de maneira mais marcada, em “Bitch”. A principal diferença entre as versões do vinil e do CD é que a última incorpora um sample da batida do Olodum. Detalhe: surrupiado das gravações de Paul Simon! Se algum outro álbum de rock lançado no Brasil em 1992 ou 1993 apresenta tal amplitude de referências, por favor me avisem!
Tem mais: “Friends” é um hip hop que tem na sua base uma levada de samba. Os teclados conferem à música uma atmosfera trip hop. Segundo Castor, o vinil conta com instrumentos de percussão, contribuição de um grupo de pagode. O CD, além de repetir essa versão, traz outra, mais acelerada, que recicla as bases eletrônicas.
“Freeze… Now Move” é puramente tecno, mas recorre a um sample “interno”, que vem da faixa “Clapton Killed Vaughan” de We Give a Shit. Essa música só consta do CD, assim como outra vinheta, “Apoteozys”, que registra os gritos (incluindo os meus!) da plateia ao final da apresentação da banda no Hollywood Rock.
E tudo isso não incluiu ainda o começo. O CD juntas as faixas iniciais de cada lado do vinil. “Buy Dis” traz Edu rapeando sobre uma base de funk eletrônico. “Intro (Kingzobullshit92)” mantém o mesmo clima de funk eletrônico, mas o resultado é obtido com o sample de “Happy Birthday”, de Jimi Hendrix e Curtis Knight (1968). Na versão de Megablasts, a base é um beat box humano.
Uma curiosidade que mais de um fã não deixou passar. O mesmo trecho de “Happy Birthday” foi usado na faixa de abertura do contemporâneo Check Your Head, álbum da Beastie Boys. Mais uma demonstração do quanto as antenas da DeFalla estavam ligadas na mesma frequência de uma de suas inspirações e ao mesmo tempo sintonizavam um Tim Maia.
Underground invocado
A DeFalla é uma banda formada em Porto Alegre, mas nunca viveu em fronteiras definidas. Para Kingzo, os ensaios foram feitos na capital gaúcha antes do quarteto aterrissar em Belo Horizonte nos estúdios usados pela Cogumelo. Como vimos, Osasco e Guarda do Embaú são parte das paisagens do álbum.
Podemos ainda afirmar que Kingzo também foi forjado no Rio de Janeiro. Nesse caso, temos algumas informações importantes sobre os paradeiros da banda graças a registros inseridos na biografia da Planet Hemp e no livro de Leonardo Panço.
Em 1991, a DeFalla poderia ser encontrada no Tutti-Fruti Rock Point, em Duque de Caxias. Em 1992, no Circo Voador, onde ocorreu o lançamento de Kingzo. O mítico Garage Art Club ficava mais ou menos a meio caminho e por lá também passou a DeFalla desde a sua fundação em 1991.
Se essas estações alimentavam as criações dos gaúchos, foram também deixando marcas por onde passavam. Poindexter (de Vital, atual vocalista do Matanza) era uma das bandas fortemente influenciadas pela DeFalla.
Outra era a Tubarões Voadores, que, como a Poindexter, perpetrou uma versão para “Não Me Mande Flores”, faixa do primeiro álbum da DeFalla. Edu K, aliás, inaugurou sua carreira de produtor com sua mão no CD de estreia dessa banda de Itaboraí.
Catapultada do mesmo underground veio a Planet Hemp, que jogou no caldeirão registrado em Usuário (1995) os mesmos ingredientes de Kingzo. Edu K lamenta não ter atendido ao convite da banda carioca para produzir o álbum de estreia.
Mas suas contribuições não foram esquecidas e ficaram impressas em letras. “Hemp Family” cita “Caminha (Q Aqui é de Osasco)” e “1967”, já do repertório de Marcelo D2, relembra: “À noite Circo Voador, show do DeFalla…”.
Mais do que o Hollywood Rock, então, talvez o festival mais representativo do papel desempenhado pela DeFalla seja o SuperDemo 4, que ocorreu no glorioso Circo Voador em dois dias de outubro de 1993. A DeFalla fechou o primeiro dia, logo após o show da ascendente Chico Science & Nação Zumbi.
Outra demonstração da força da DeFalla está no Triputo, coletânea de versões em homenagem à banda gaúcha. Entre os artistas participantes, estão, além de Rafael Crespo da Planet Hemp, a Mickey Junkies de Osasco e John Ulhoa da Pato Fu.
A ironia é que em meio à agitação que contribuiu para provocar, a DeFalla tenha se bifurcado. O protagonismo de Edu K esticou algumas cordas da sustentação da banda. Foram surgindo projetos paralelos até que ele assumiu uma identidade solo com o lançamento de um álbum em 1995.
Castor, Flu e Fornazier chamaram Tonho Crocco e Paula Nozzari para fazer as músicas incluídas em Top Hits, assinado pela D.Fhala. Crocco era também o vocalista da banda que no sul trazia em seu DNA as marcas da mistura defallica, a Ultramen.
A história da DeFalla teria outros capítulos ainda. Mas, em se tratando de Kingzo, a última frase deve ser dirigida à Cogumelo, engrossando as reivindicações da banda. Edu prometeu que o lançamento de Kingzo em plataformas digitais viria com faixas extras, trintonas como as demais. Portanto: e aí Cogumelo?!
Kingzo em versão vinil: https://www.mixcloud.com/mutanteradio/castor-daudt-show-207-mutante-radio/
Kingzo em versão CD:
Saudações: um super obrigado a Castor, Edu e Flu pelos papos!
Emerson G curte ler e escrever sobre música, especialmente rock. Sua formação é em antropologia embalada por “bons sons”, para citar o reverendo Fábio Massari. Outra citação que assina embaixo: “sem música, a vida seria um erro” (F. Nietzsche).
Baita texto, parabéns !
nunca tá completo: o aclamado albim do Planet Hemp de 2022 volta a saidar DeFalla em uma de suas faixas, O Ritmo e a Raiva.
Que nada. Emerson Giumbelli.
Discaralhaço…
E quanta gente bebeu nesta fonte.
Os dois discos lançados pela Cogumelo tão diferentes entre sí (se não fosse assim não seria DEFALLA) .
Boa notícia sobre o lançamento comemorativo, tomara que também seja lançado em formato físico (CD).
Texto muito completo.
Parabéns !
Obrigado, Itamar, pelos comentários. O lançamento em plataformas digitais ainda não está confirmado. Aliás, vamos botar uma pressão na Cogumelo para que isso aconteça.
Emerson Gasperin?