Sem Nenhuma Direção: De Falla 1987

 

 

Emerson Giumbelli e Frederico Machado, ou, para as andanças musicais e virtuais, Emerson G e Fred M, são dois acadêmicos respeitáveis, antropólogo e psicólogo, respectivamente. Porém, nas horas vagas, são dois fãs absolutos de música e dotados de uma verve invejável.

 

Emerson colabora com a Célula Pop há tempos e já entregou textos sensacionais, minuciosos, cheios de informação e revelações. Fred ainda é um desconhecido para mim, mas também já deu as caras por aqui em colaboração com Emerson em texto sobre May East. Mas o que realmente importa, é que os dois estão lançando um livro sensacional: “Sem nenhuma direção: DeFalla, 1987”.

 

O livro conta a história da banda desde o seu início, em 1985, até a produção e divulgação de “Papaparty”, seu álbum de estreia, inserindo sua criação na cena roqueira porto-alegrense e no cenário do rock nacional da década de 1980. Unindo a experiência em pesquisa e a familiaridade com o mundo da música, além de horas de entrevistas com os integrantes da banda e outros personagens da cena musical da época, eles produziram um livro que examina letras e sonoridades da banda, encontrando nelas conexões com política, gênero, sexualidade, diversidade e diversão.

 

Bati um papo com eles via e-mail e recomendo fortemente a obra, que está saindo pela Editora Badejo.

 

 

– A impressão que se tem da banda é que, mesmo dentro dos limites do RS, ela era realmente especial. O que o DeFalla tinha que nenhuma outra banda brasileira tinha?

EG: Em meados dos anos 80, Porto Alegre estava em estado de efervescência. Os elementos não eram muito diferentes do que se via em outras grandes cidades brasileiras. Mas assim como Belo Horizonte (terra do meu parceiro Fred), a escala de grandeza de Porto Alegre tornava tudo mais urgente e absorvente. A DeFalla foi uma das várias bandas que surgiram nesse terreno muito bem adubado, como mostramos no livro ao apresentar o bairro que foi o ícone da efervescência cultural porto-alegrense, o Bom Fim.

Se trocamos o pano de fundo, indo para o cenário nacional, dá pra dizer que a DeFalla se destacava em vários aspectos. Edu K tinha um voz potente e cheia de personalidade, além de tirar um barulho infernal da guitarra e de ser um show(wo)man nos palcos. Biba Meira era uma baterista fenomenal, com um estilo próprio, fundindo levadas pós punk e suingue. Castor Daudt e Flavio Flu Santos trouxeram para a banda anos de entrosamento e versatilidade. A união desses quatro foi muito além de qualquer soma, resultando em “uma máquina hip hop-funk-soul-punk de colagens” que tentamos desvendar em nosso livro. Com esses elementos, a DeFalla foi singular, embora tenha feito parte de experimentações que se espalharam pelo rock brasileiro dos anos 87 e 88.

 

– Quais foram os critérios de pesquisa que vocês usaram?

FM: O procedimento mais importante da pesquisa foi escutar o Papaparty. Escutar com o corpo, mas também com ouvidos analíticos. Eu costumo dizer que o Emerson é um especialista em etnografar sons. Como co-autor, foi um exercício fascinante entrar nas camadas de sons do disco, convidado pelo olhar do Emerson. Entretanto, além de escutar as músicas, iniciamos a pesquisa lendo as reportagens da época e assistindo vídeos disponíveis na internet. Biba nos passou uns clippings bem completos de reportagens da época, foi uma viagem no tempo…

Na sequência, entrevistamos a banda, que foi super receptiva. Foram conversas muito divertidas e estimulantes, como tem sido até hoje, nos desdobramentos do livro, nas lives de lançamento e etc. São de fato pessoas incríveis. Entrevistamos também Paulo Seben (letrista em três músicas), Antônio Meira (empresário da banda) e Carlo Pianta (baixista na formação original da banda, entre 1985 e 86). Vimos ainda alguns documentários e lemos alguns livros de referência para compreender a efervescência do Bom Fim. Esse foi um passo importante, pois como somos de fora de Porto Alegre, era importante compreender o que rolava no “bonfa”.

 

– Por que vocês escolheram o álbum de estreia da banda como objeto de pesquisa?

FM: Talvez tenha sido esse álbum que nos escolheu (risos). Na verdade, a ideia de escrever sobre algo da música local, que era um desejo de parceria entre nós, poderia remeter a muitos álbuns importantes e de que gostamos. Entretanto, não vejo outro disco que poderia ter sido escolhido. O Papaparty é um divisor de águas na cena local e transcende muito a cena de Porto Alegre, tinha que ser ele. Obviamente o disco e a banda fecham um frame que tem muito a ver com o que a gente curte escutar e pensar a respeito, entre diversas outras coisas, esta interface entre o underground e o mainstream, o pop e o alternativo, formam um campo muito instigante de pesquisa.

EG: Havia também critérios objetivos para apoiar nossos insights. Na eleição dos críticos da revista Bizz, o álbum de estreia da DeFalla conquistou a terceira posição entre os melhores de 1987, ficando atrás apenas de Titãs e da Fellini. Embora não tenha alcançado sucesso comercial (longe disso!), algumas das músicas foram bem executadas nas “rádios rock”. Isso se prolongou com o segundo álbum, de 1988. Foi mais do que suficiente para a DeFalla se firmar como uma influência indelével para bandas como Planet Hemp, Mundo Livre S/A, Chico Science & Nação Zumbi… Um disco como Papaparty merecia um livro!

 

 

– Há uma história muito legal por trás da letra de “Não Me Mande Flores”. Conta pra gente?

EG: A letra dessa música que foi um dos “hits” do Papaparty foi escrita por Luciane Adami, uma das vocalistas do Urubu Rei, projeto do saudoso Carlos Eduardo Miranda e uma das bandas ancestrais da DeFalla. Castor e Flu contam no livro que a letra narra uma situação real que Luciane viveu, cansada das investidas prá lá de insistentes de um sujeito muito mala. No livro, valorizamos essa voz feminina, algo que na DeFalla se soma à presença de Biba nas baquetas e aos hábitos crossdresser de Edu K. Ainda eram os anos 80! Sem anunciar, a banda tinha um lado que mexia, e muito, com as estruturas de gênero.

 

 

– Qual foi a maior dificuldade que vocês encontraram na confecção do livro?

FM: Sem dúvida, a maior dificuldade foi encontrar uma editora… Mas essa foi uma dificuldade mais burocrática e que teve um final feliz com o envolvimento da Badejo. Eu acho que algumas coisas foram desafiadoras pra gente nesse percurso. Uma delas tem a ver com sermos de fora, algo que ao mesmo tempo também nos dava uma perspectiva interessante para explorar o tema, um olhar estrangeiro… Esse seria um desafio que eu chamaria de epistemológico, pra não perder o ranço acadêmico nessa conversa.

Outro desafio foi criar uma linha lógica na escrita que não fosse meramente informativa… Seria muito óbvio começar na primeira música e chegar na última, com uma intro falando do Bom Fim e um “beijo, beijo” no final. Na medida em que a escrita foi tomando corpo é que tivemos a sacada de separar os capítulos pelas múltiplas origens da DeFalla. Todas as músicas são comentadas, organizadas em capítulos que apresentam as trajetórias dos músicos e fazem relações com a cena rockeira local e nacional.

 

– Vocês diriam que o DeFalla foi o pioneiro no uso de samples e referências do hip hop dentro do rock nacional?

FM: Dizer que alguém foi o pioneiro no uso de samples é muito difícil, pois entre um loop de fita e uma edição de áudio no pro-tools há muitas nuances. Eu nem acho que seja relevante dizer quem usou ou deixou de usar primeiro. O que eu acho interessante dizer é que na concepção estética, no projeto por trás do som do Papaparty, a idéia de “sample” já estava muito bem amadurecida. Tudo o que remete a colagens, compilação de referências, o flerte com sons concretos, já estava ali. A lógica do hip hop já estava nas sinapses de Edu K e a banda embarcou na viagem, prolongada no segundo álbum.

 

 

– O que vocês acham da fase pós-ano 2000 da banda, quando lançaram “Popozuda Rock’n’Roll”?

EG: Na verdade, a fase mais recente da DeFalla é o álbum Monstro, de 2016. Infelizmente, pouco conhecido. Vale ainda notar que cada um dos integrantes da DeFalla de 1987 mantém até hoje projetos relacionados com a música. Basta procurar nas plataformas e sites.

“Popozuda” foi lançada no ano de 2000. Tem o batidão funk, miami bass, com uma fusão com o rock que remete aos Beastie Boys fase Licenced to Ill. Assim como os Beastie Boys fizeram coisas bem diferentes depois, a DeFalla fez coisas bem diferentes antes, embora continuidades existam. Aliás, na época de “Popozuda Rock’n’Roll”, da formação de 1987 restava apenas Edu K. É curioso que seja a faixa mais executada “da DeFalla” no Spotify. A gente espera que o livro contribua para colocar para cima nesse ranking umas das melhores músicas de 1987, “Sobre Amanhã”. Dedicamos o capítulo final do livro para ela.

FM: Eu particularmente gosto da faixa e, como o Emerson sinalizou, as referências dela não estão distantes de outros trabalhos da DeFalla. E essa música, com sua repercussão e tudo que veio junto, reflete muito a criatividade camaleônica e essa alma inquieta do Edu K. Enquanto a maioria dos fãs de rock destilavam preconceito contra o funk carioca, o cara vai lá e faz uma fusão super competente que virou hit. E é louco porque na época essa faixa estourou, mas ao mesmo tempo ela tocava nas festas alternativas.

 

 

– Que outras bandas gaúchas vocês acham que mereceriam registro em livro?

EG: Já há livros sobre Engenheiros do Hawaii, Nenhum de Nós, Júpiter Maçã, Julio Reny (figura essencial da cena local)… Dos anos 80, Replicantes é uma banda fenomenal que espera por um livro. Um olhar sobre os anos 90 deveria incluir, no mínimo e por diferentes motivos, Graforréia Xilarmônica, Ultramen e Bidê ou Balde. O que vem depois talvez ainda precise de mais tempo para processarmos suas marcas. Mas a cena gaúcha continuou a produzir música de altíssima qualidade.

Nosso livro tem como singularidade enfocar um álbum, a partir da inspiração propiciada pela coleção 33 ⅓ da editora Bloomsbury. Ainda fica o desafio de contar a história do que vem depois de Papaparty, com destaque para o segundo álbum (apelidado de It’s Fucking Boring to Death) e para as novas experimentações de Kingzobullshitbackinfulleffect92.

FM: PoA tem muitos artistas que mereceriam registros como estes e eu acho que a cena alternativa merece mais atenção, pois é de onde surgem as coisas mais originais. Temos livros e documentários sobre isso, como o livro A Fantástica Fábrica, de Leo Felipe, no qual ele conta um pouco da história do Garagem Hermética, uma casa noturna que marcou época na cidade. A cena alternativa da cidade tem bandas incríveis, como Ornitorrincos, Space Rave, Loomer, Ex, Walverdes, Lautmusik e muitas outras, que reinventam os espaços da cidade. Recentemente lançaram o documentário This is CANOAS, not POA!, sobre a cena da cidade de Canoas. Acho essas iniciativas muito importantes. Temos também o Carlos Eduardo Miranda, que não se resume a Porto Alegre, mas é uma figura muito importante e ainda faltam palavras para expressar a importância dele na música brasileira.

 

 

– A produção literária sobre discos e bandas vem crescendo no Brasil. Vocês têm alguma ideia das razões para isso?

EG: Talvez seja o efeito de um momento reflexivo. Ele se nutre de uma potente imersão subjetiva: é coisa feita por quem gosta do que escreve. Mas isso se combina com algum distanciamento, nem que seja aquele produzido pelo tempo. De todo modo, é algo a ser celebrado, com o acúmulo de livros, blogs, podcasts dedicados a processar as histórias da música popular no Brasil. É inevitável que sejamos levados a revisar certas leituras, produzindo novas perspectivas sobre essas histórias. Colaborações entre o jornalismo e pesquisas acadêmicas são um dos desafios dessa onda de produção literária. Estamos felizes por engrossar esse coro.

CEL

Carlos Eduardo Lima (CEL) é doutorando em História Social, jornalista especializado em cultura pop e editor-chefe da Célula Pop. Como crítico musical há mais de 20 anos, já trabalhou para o site Monkeybuzz e as revistas Rolling Stone Brasil e Rock Press. Acha que o mundo acabou no início dos anos 90, mas agora sabe que poucos e bons notaram. Ainda acredita que cacetadas da vida são essenciais para a produção da arte.

2 thoughts on “Sem Nenhuma Direção: De Falla 1987

  • 24 de junho de 2021 em 22:33
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    Jean, com certeza essa banda rende muito mais história! Merece!

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  • 28 de abril de 2021 em 21:28
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    Defalla: minha banda predileta! Que a história errática dessa banda ganhe novos episódios com o lançamento desse livro!

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